Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Educação
Argumentação, Estilo, Composição: Introdução
à Escrita Acadêmica
Tomaz Tadeu da Silva
Como argumentar
Comecemos pelo óbvio: o objetivo central de um texto
acadêmico é o de argumentar a favor de alguma tese específica. Esquematicamente,
um texto acadêmico consiste nisso, na apresentação de uma tese e na sua
demonstração. Como consequência, esse tipo de texto lida basicamente não com
aquilo que é incontestavelmente verdadeiro (não precisa ser demonstrado, porque
é universalmente aceito), nem com aquilo que pertence à esfera da pura
preferência pessoal (tampouco precisa ser demonstrado, porque é, por definição,
“verdadeiro” apenas para mim), mas com aquilo que é apenas verossímil, isto é,
com aquilo que pode ser verdadeiro ou não. É tão somente o verossímil, o
discutível, que precisa de demonstração. Argumentar consiste em mostrar que o
verossímil é também verdadeiro.
Como fazer essa demonstração? Ao desenvolver um argumento em
torno de alguma tese, utilizo recursos de natureza variada, a lógica, a dedução
e o raciocínio; a apresentação de fatos, exemplos e estatísticas; a citação de
fontes autorizadas. Trata- se de recursos próprios do discurso acadêmico de
caráter puramente científico. Numa esfera intermediária, em que se situam alguns
dos nossos textos de teoria educacional, talvez de natureza mais política ou
ética, pode-se utilizar argumentos que apelem para objetivos ou valores
partilhados por um determinado grupo cultural, político, nacional, sexual,
racial, etc. Num outro extremo, já fora do âmbito acadêmico, utilizam-se
recursos de ordem emocional e afetiva, próprios de discursos como o político, o
jurídico, o publicitário, etc. Por definição, em um texto acadêmico utilizam-se
apenas métodos que podem ser considerados lógicos e racionais, que fazem apelo
apenas à razão e ao raciocínio e não à emoção e ao sentimento.
Há basicamente dois modos de raciocínio que
levam a uma tese ou a uma conclusão: a indução (ou generalização) e a dedução
(ou particularização). O primeiro é de ordem experimental, empírica; o segundo,
de ordem lógica. Uma argumentação complexa é feita de uma combinação dos dois.
A indução consiste em se estabelecer a verdade de uma conclusão ou principio
geral ou universal a partir da verificação da verdade de um número “suficiente” ou “razoável” de casos
particulares. Assim, por exemplo, no seu texto sobre uma esquina de Porto
Alegre, Rosana, tendo verificado que um número considerável de pessoas portavam
seus apetrechos para chimarrão, chegou à conclusão ou generalização de que os
gaúchos tendem a carregar esse tipo de equipamento. A dedução, por outro lado,
consiste em se chegar a uma conclusão simplesmente aplicando-se uma regra geral
a um caso particular. O raciocínio básico é o de que se um princípio ou característica
é verdadeiro ou válido para o universo, será verdadeiro ou válido para qualquer
elemento desse universo. Trata-se de uma questão de pura lógica. Não há aqui
nenhuma exigência de verificação empírica. Evidentemente, numa argumentação
complexa supõe-se que o princípio cuja universalidade é suposta tenha sido
verificado por indução, isto é, empiricamente ou experimentalmente, mas no
contexto isolado da dedução, a validade do princípio universal (ou premissa
maior, na fórmula do
silogismo clássico) não está em questão. O que importa é que o raciocínio seja formalmente
ou logicamente válido. Para utilizar o mesmo exemplo da Rosana,
poderíamos concluir que Rodrigo, um gaúcho, deve andar com seu equipamento de
chimarrão porque todo gaúcho faz isso. Se quisermos colocar na forma do
silogismo clássico teríamos:
Todo gaúcho porta seu
equipamento de chimarrão. (premissa maior)
Rodrigo é gaúcho, (premissa menor)
Logo, Rodrigo porta seu
equipamento de chimarrão. (conclusão, tese)
Não está em questão, aqui, a
validade da premissa maior ou do princípio universal (que vale para todo
elemento do universo), mas a validade interna ou formal do raciocínio. Para ser
válido, a premissa maior deve ser uma proposição de alcance universal que supõe
que todos os elementos de um determinado universo partilhem alguma propriedade,
a premissa menor deve ser uma proposição que reconhece um elemento qualquer
como pertencendo àquele universo e a conclusão deve atribuir, como consequência,
a mesma propriedade partilhada por todos os elementos do universo a esse
elemento particular. Se representarmos por A a característica que define o
universo (gaúcho, neste caso), por B o indivíduo que reconhecemos como
pertencendo ao universo (Rodrigo, no nosso exemplo) e por C a propriedade
partilhada por todos os membros do universo (portadores de equipamento de chimarrão,
no nosso exemplo), teríamos, esquematicamente:
A-C
B-A
B-C
Para ser válido, um silogismo deve, pois, ter
necessariamente essa forma.
Ao apresentar os modos de argumentação desse
modo formal, ficamos com a impressão de que eles têm uma utilização puramente
acadêmica ou teórica. Sob formas talvez irreconhecíveis, eles são, entretanto,
parte integrante dos raciocínios e dos pensamentos que fazemos em todas as
atividades de nossa vida cotidiana. É possível, por exemplo, descrever cada uma
das decisões que tomamos em nosso cotidiano como o resultado final de uma
complexa cadeia de raciocínio constituída por uma combinação de indução e
dedução. Como exercício, considere, por exemplo, a seguinte decisão: “vou me
candidatar à seleção ao Doutorado em Educação da UFRGS”. Tomando essa decisão
como sendo a conclusão final, construa a possível cadeia de raciocínio que
levou a essa decisão.
Temos dificuldade em reconhecer os dois modos
básicos de argumentação e demonstração (dedução e indução) tanto na vida
cotidiana quanto em nossos textos pela simples razão de que eles aí aparecem
sob as mais variadas formas. As formas linguísticas que temos para expressá-los
são infinitamente mais variadas do que nos sugere a descrição que deles se
fazem nos manuais de lógica e nos livros que lidam com a questão da argumentação. Para ilustrar isso, podemos
voltar ao exemplo dos gaúchos e do chimarrão. A conclusão da Rosana, “Rodrigo
deve andar com seu equipamento de chimarrão porque é gaúcho” não lembra
imediatamente a forma do silogismo clássico porque não está claramente dividida
em premissa maior - premissa menor - conclusão. A língua é muito mais sutil e
muito mais complexa do que sugerem os manuais de lógica. O “raciocínio” pode
ser ainda muito mais sintético e conciso, como na clássica exclamação machista
dirigida a uma mulher na direção de um carro: “Barbeira!”. (Refaça o silogismo
que leva a essa “conclusão”).
Observe que o silogismo é válido; o que é
duvidoso é o processo indutivo - uma generalização indevida – (que levou à
premissa maior e é aqui que reside o machismo e o preconceito). Grande parte da
eficácia desse tipo de “raciocínio” provém do fato de que há certo “acordo”
geral relativamente aos seus pressupostos. Na retórica clássica, um raciocínio
dedutivo em que a premissa maior está implícita e é supostamente partilhada
chama-se “entimema”. O estereótipo baseia-se, em grande parte, na eficácia
desse mecanismo. (Uma boa maneira de questionar um estereótipo consiste
justamente em tornar explícita a premissa maior).
Falácias e problemas de argumentação
As falhas de argumentação e as falácias
devem-se, fundamentalmente, à deduções inválidas ou a generalizações indevidas,
mas também a apelos a recursos extra-racionais (emocionais, subjetivos,
pessoais, etc.). Destacaremos os seguintes problemas:
l. Generalizações indevidas - fazemos uma
generalização indevida quando induzimos um princípio geral ou universal a
partir de um número insuficiente de casos particulares. Evidentemente, o que se
pode considerar “número insuficiente” depende de cada contexto específico, mas
como regra geral deve-se desconfiar de toda generalização (olha aí, uma
delas!). O primeiro gesto face a uma generalização deve ser o de desconfiança;
apenas num segundo momento, depois de suficiente reflexão e consideração, é que
talvez possamos ir adiante com a generalização. É preciso observar que a área
semântica da generalização é bastante vasta. A generalização se esconde sob uma
gama bastante ampla de expressões linguísticas que inclui não apenas
suas manifestações positivas (todo, etc ), mas também as negativas (nenhum,
etc.). Eis aqui uma lista parcial dessas expressões: todo, sempre, nunca, tudo,
jamais, nenhum, cada, cada vez, geralmente... (completem!). Lembrem- se também
de que a generalização não se expressa apenas por meio de formas gramaticais
como as que acabei de listar, ela se disfarça sob muitas outras formas. Assim,
por exemplo, na área mais propriamente “moral” ou “ética” expressões do tipo “E
preciso”....”, “Devemos...”, muito comum nos parágrafos finais de certos textos
educacionais, também podem ser consideradas generalizações (no caso,
pretendemos estender para todo mundo certos princípios éticos, morais ou
políticos que nós, particularmente, consideramos válidos). Também podem
ser colocadas na classe das generalizações, certas expressões linguísticas de
atribuição de autoria que levam a supor que uma afirmação particular é
partilhada universalmente. Assim, por exemplo, quando se escreve, num texto,
algo como “Pensa-se que os brasileiros são generosos...”, a impessoalidade do
pronome reflexivo “se” sugere que esse pensamento seja universalmente
partilhado quando pode não ser o caso (geralmente, não é). Algo similar se
passa com o emprego do pronome “nós” quando se atribui à ação a que ele se
refere uma universalidade que pode não ter (“Nós acreditamos que...”, na
suposição de que o “nós” esteja representando um grupo mais amplo do que aquele
que é legítimo supor). Nesses casos, é bom aplicar a famosa frase popular, “nós
quem, cara pálida?”. Tudo isso não significa dizer que não se deve jamais
generalizar. Trata-se apenas de uma questão de prudência e cuidado. Às vezes,
pode-se “salvar” uma generalização aplicando-se uma expressão atenuante ou
limitante. Em vez de simplesmente dizer “em todos os casos”, por exemplo,
pode-se afirmar, de forma mais modesta, “em muitos casos”, “nos casos
conhecidos”, “nos casos examinados”, etc. E existem casos, evidentemente, em que
a generalização é justificável.
Muitos dos argumentos que ouvimos sobre
questões públicas e políticas baseiam-se em generalizações indevidas ou
apressadas. Assim, por exemplo, quando se argumenta que “se proibíssemos filmes
violentos na televisão, haveria menos violência juvenil”, está-se utilizando um
argumento com base numa generalização indevida. Neste caso, não se trata apenas
de que a generalização se baseia num número insuficiente de casos, mas, de
forma muito mais importante, trata-se de uma generalização que talvez jamais
poderá ser feita, considerando-se a complexidade dos fatores que causam a
violência juvenil. Trata-se de uma simplificação.
2. Argumentos do tipo non sequiur -
incorremos nesta falha de raciocínio quando deduzimos de uma dada premissa uma
conclusão com a qual ela não tem qualquer conexão. Essa falácia é evidente
quando nós utilizamos alguma partícula de ligação entre a premissa e a
conclusão, como neste exemplo: “É evidente que o discurso constitui a
subjetividade, pois todo discurso é um componente essencial de relações de
poder”. (Qual é a premissa? Qual é a conclusão?). Ela é menos evidente quando a
ligação está apenas implícita: “O discurso é um componente essencial das
relações de poder. Ele é um elemento importante na constituição da
subjetividade”. De uma maneira ou de outra, é importante examinar o que
escrevemos para flagrar as passagens em que estabelecemos relações entre
proposições cujas conexões não estão demonstradas.
3. Argumentos circulares - caímos nesse tipo de
falácia quando utilizamos para provar ama proposição uma outra proposição que
não é nada mais do que a mesma proposição inicial sob outra forma. Exemplo: “E
evidente que o discurso constitui a subjetividade, pois a subjetividade é um
produto do discurso”. Assim colocada, parece evidentemente ridícula, mas
trata-se de uma falácia que é encontrada muito mais frequentemente do que se
pensa.
Marcadores linguísticos da argumentação
A tabela seguinte lista alguns dos principais
marcadores linguísticos de uma sequencia argumentativa:
Exercícios
1. Considere o seguinte trecho da “Meditação
Segunda” das Meditações de Descartes (Obra escolhida, Bertrand
Brasil, p. 125):
O que poderá (...) ser considerado
verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo.
(...) Eu me persuadi, pois, de que nada havia no mundo, que não havia nenhum
céu, nenhuma terra, espírito algum, nem corpo algum. Persuadi-me também,
portanto, de que eu não existia? Certamente não: eu existia sem dúvida, já que
eu me persuadi ou apenas pensei alguma coisa. Mas suponhamos que haja algum
enganador, não sei qual, muito poderoso e muito ardiloso que empregar (toda a
sua indústria em engancir-me sempre). Não há, pois, dúvida alguma de que sou,
se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu
nada seja, enquanto eu pensar alguma coisa. De sorte que, após ter pensado
bastante nisso e de ter examinado cuidadosamente todas as coisa, cumpre enfim
concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente
verdadeira, todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.
(Com pequenas modificações, com o devido
perdão de Descartes)
Neste trecho. Descartes chega duas vezes à
conclusão “eu existo”. Refaça o raciocínio de Descartes, destacando, em cada
caso, as premissas e as conclusões.
2. Considere o seguinte trecho de Vigiar e
punir, de Foucault.
A prisão não deve ser vista como uma
instituição inerte, que volta e meia teria sido sacudida por movimentos de
reforma. A “teoria da prisão” foi seu modo de usar constante, mais que sua
crítica incidente - uma
de suas condições de funcionamento. A prisão fez sempre parte de um campo ativo
onde abundarem os projetos, os remanejamentos, as experiências, os discursos
teóricos, os testemunhos, os inquéritos. Em torno da instituição carcerária,
toda uma prolixidade, todo um zelo. (Vozes, 22a ed., p. 198).
Qual é a conclusão do raciocínio desenvolvido
neste parágrafo? Quais as premissas que levam a essa conclusão?
3.
Considere
o capítulo 1 do livro Identidade e diferença. Leia os parágrafos
iniciais (até p. 9, terminando na frase “A identidade é, assim, marcada pela
diferença”). A autora desenvolve todo um raciocínio, para desenvolver uma tese,
para chegar a uma conclusão. Qual é a tese? Que método ela utiliza para desenvolver essa
tese? Agora, partindo da mesma tese, desenvolva-a por meio de um outro método.
4. Considere o segundo
parágrafo da p. 17 do mesmo texto. Qual é o argumento principal deste
parágrafo? Qual a estratégia principal da autora para desenvolver essa
conclusão?
5. A frase “O outro cultural é sempre
um problema, pois coloca permanentemente em xeque nossa própria identidade” (Identidade
e diferença, p. 97) pode ser considerada um “entimema”. Isto é, a premissa
maior ou o pressuposto está implícito, na suposição de que ele é aceito, de
forma partilhada, pelo autor e pelo leitor. Reconstrua a frase em termos do
silogismo clássico, destacando a premissa maior implícita.
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