quinta-feira, 1 de maio de 2014

Como argumentar

Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Educação
Argumentação, Estilo, Composição: Introdução à Escrita Acadêmica
Tomaz Tadeu da Silva

Como argumentar

Comecemos pelo óbvio: o objetivo central de um texto acadêmico é o de argumentar a favor de alguma tese específica. Esquematicamente, um texto acadêmico consiste nisso, na apresentação de uma tese e na sua demonstração. Como consequência, esse tipo de texto lida basicamente não com aquilo que é incontestavelmente verdadeiro (não precisa ser demonstrado, porque é universalmente aceito), nem com aquilo que pertence à esfera da pura preferência pessoal (tampouco precisa ser demonstrado, porque é, por definição, “verdadeiro” apenas para mim), mas com aquilo que é apenas verossímil, isto é, com aquilo que pode ser verdadeiro ou não. É tão somente o verossímil, o discutível, que precisa de demonstração. Argumentar consiste em mostrar que o verossímil é também verdadeiro.

Como fazer essa demonstração? Ao desenvolver um argumento em torno de alguma tese, utilizo recursos de natureza variada, a lógica, a dedução e o raciocínio; a apresentação de fatos, exemplos e estatísticas; a citação de fontes autorizadas. Trata- se de recursos próprios do discurso acadêmico de caráter puramente científico. Numa esfera intermediária, em que se situam alguns dos nossos textos de teoria educacional, talvez de natureza mais política ou ética, pode-se utilizar argumentos que apelem para objetivos ou valores partilhados por um determinado grupo cultural, político, nacional, sexual, racial, etc. Num outro extremo, já fora do âmbito acadêmico, utilizam-se recursos de ordem emocional e afetiva, próprios de discursos como o político, o jurídico, o publicitário, etc. Por definição, em um texto acadêmico utilizam-se apenas métodos que podem ser considerados lógicos e racionais, que fazem apelo apenas à razão e ao raciocínio e não à emoção e ao sentimento.

Há basicamente dois modos de raciocínio que levam a uma tese ou a uma conclusão: a indução (ou generalização) e a dedução (ou particularização). O primeiro é de ordem experimental, empírica; o segundo, de ordem lógica. Uma argumentação complexa é feita de uma combinação dos dois. A indução consiste em se estabelecer a verdade de uma conclusão ou principio geral ou universal a partir da verificação da verdade de um número “suficiente” ou “razoável” de casos particulares. Assim, por exemplo, no seu texto sobre uma esquina de Porto Alegre, Rosana, tendo verificado que um número considerável de pessoas portavam seus apetrechos para chimarrão, chegou à conclusão ou generalização de que os gaúchos tendem a carregar esse tipo de equipamento. A dedução, por outro lado, consiste em se chegar a uma conclusão simplesmente aplicando-se uma regra geral a um caso particular. O raciocínio básico é o de que se um princípio ou característica é verdadeiro ou válido para o universo, será verdadeiro ou válido para qualquer elemento desse universo. Trata-se de uma questão de pura lógica. Não há aqui nenhuma exigência de verificação empírica. Evidentemente, numa argumentação complexa supõe-se que o princípio cuja universalidade é suposta tenha sido verificado por indução, isto é, empiricamente ou experimentalmente, mas no contexto isolado da dedução, a validade do princípio universal (ou premissa maior, na fórmula do silogismo clássico) não está em questão. O que importa é que o raciocínio seja formalmente ou logicamente válido. Para utilizar o mesmo exemplo da Rosana, poderíamos concluir que Rodrigo, um gaúcho, deve andar com seu equipamento de chimarrão porque todo gaúcho faz isso. Se quisermos colocar na forma do silogismo clássico teríamos:

Todo gaúcho porta seu equipamento de chimarrão. (premissa maior)
Rodrigo é gaúcho, (premissa menor)
Logo, Rodrigo porta seu equipamento de chimarrão. (conclusão, tese)

Não está em questão, aqui, a validade da premissa maior ou do princípio universal (que vale para todo elemento do universo), mas a validade interna ou formal do raciocínio. Para ser válido, a premissa maior deve ser uma proposição de alcance universal que supõe que todos os elementos de um determinado universo partilhem alguma propriedade, a premissa menor deve ser uma proposição que reconhece um elemento qualquer como pertencendo àquele universo e a conclusão deve atribuir, como consequência, a mesma propriedade partilhada por todos os elementos do universo a esse elemento particular. Se representarmos por A a característica que define o universo (gaúcho, neste caso), por B o indivíduo que reconhecemos como pertencendo ao universo (Rodrigo, no nosso exemplo) e por C a propriedade partilhada por todos os membros do universo (portadores de equipamento de chimarrão, no nosso exemplo), teríamos, esquematicamente:
           
A-C
B-A
B-C

Para ser válido, um silogismo deve, pois, ter necessariamente essa forma.
Ao apresentar os modos de argumentação desse modo formal, ficamos com a impressão de que eles têm uma utilização puramente acadêmica ou teórica. Sob formas talvez irreconhecíveis, eles são, entretanto, parte integrante dos raciocínios e dos pensamentos que fazemos em todas as atividades de nossa vida cotidiana. É possível, por exemplo, descrever cada uma das decisões que tomamos em nosso cotidiano como o resultado final de uma complexa cadeia de raciocínio constituída por uma combinação de indução e dedução. Como exercício, considere, por exemplo, a seguinte decisão: “vou me candidatar à seleção ao Doutorado em Educação da UFRGS”. Tomando essa decisão como sendo a conclusão final, construa a possível cadeia de raciocínio que levou a essa decisão.

Temos dificuldade em reconhecer os dois modos básicos de argumentação e demonstração (dedução e indução) tanto na vida cotidiana quanto em nossos textos pela simples razão de que eles aí aparecem sob as mais variadas formas. As formas linguísticas que temos para expressá-los são infinitamente mais variadas do que nos sugere a descrição que deles se fazem nos manuais de lógica e nos livros que lidam com a questão da argumentação. Para ilustrar isso, podemos voltar ao exemplo dos gaúchos e do chimarrão. A conclusão da Rosana, “Rodrigo deve andar com seu equipamento de chimarrão porque é gaúcho” não lembra imediatamente a forma do silogismo clássico porque não está claramente dividida em premissa maior - premissa menor - conclusão. A língua é muito mais sutil e muito mais complexa do que sugerem os manuais de lógica. O “raciocínio” pode ser ainda muito mais sintético e conciso, como na clássica exclamação machista dirigida a uma mulher na direção de um carro: “Barbeira!”. (Refaça o silogismo que leva a essa “conclusão”).

Observe que o silogismo é válido; o que é duvidoso é o processo indutivo - uma generalização indevida – (que levou à premissa maior e é aqui que reside o machismo e o preconceito). Grande parte da eficácia desse tipo de “raciocínio” provém do fato de que há certo “acordo” geral relativamente aos seus pressupostos. Na retórica clássica, um raciocínio dedutivo em que a premissa maior está implícita e é supostamente partilhada chama-se “entimema”. O estereótipo baseia-se, em grande parte, na eficácia desse mecanismo. (Uma boa maneira de questionar um estereótipo consiste justamente em tornar explícita a premissa maior).

Falácias e problemas de argumentação

As falhas de argumentação e as falácias devem-se, fundamentalmente, à deduções inválidas ou a generalizações indevidas, mas também a apelos a recursos extra-racionais (emocionais, subjetivos, pessoais, etc.). Destacaremos os seguintes problemas:

l. Generalizações indevidas - fazemos uma generalização indevida quando induzimos um princípio geral ou universal a partir de um número insuficiente de casos particulares. Evidentemente, o que se pode considerar “número insuficiente” depende de cada contexto específico, mas como regra geral deve-se desconfiar de toda generalização (olha aí, uma delas!). O primeiro gesto face a uma generalização deve ser o de desconfiança; apenas num segundo momento, depois de suficiente reflexão e consideração, é que talvez possamos ir adiante com a generalização. É preciso observar que a área semântica da generalização é bastante vasta. A generalização se esconde sob uma gama bastante ampla de expressões linguísticas que inclui não apenas suas manifestações positivas (todo, etc ), mas também as negativas (nenhum, etc.). Eis aqui uma lista parcial dessas expressões: todo, sempre, nunca, tudo, jamais, nenhum, cada, cada vez, geralmente... (completem!). Lembrem- se também de que a generalização não se expressa apenas por meio de formas gramaticais como as que acabei de listar, ela se disfarça sob muitas outras formas. Assim, por exemplo, na área mais propriamente “moral” ou “ética” expressões do tipo “E preciso”....”, “Devemos...”, muito comum nos parágrafos finais de certos textos educacionais, também podem ser consideradas generalizações (no caso, pretendemos estender para todo mundo certos princípios éticos, morais ou políticos que nós, particularmente, consideramos válidos). Também podem ser colocadas na classe das generalizações, certas expressões linguísticas de atribuição de autoria que levam a supor que uma afirmação particular é partilhada universalmente. Assim, por exemplo, quando se escreve, num texto, algo como “Pensa-se que os brasileiros são generosos...”, a impessoalidade do pronome reflexivo “se” sugere que esse pensamento seja universalmente partilhado quando pode não ser o caso (geralmente, não é). Algo similar se passa com o emprego do pronome “nós” quando se atribui à ação a que ele se refere uma universalidade que pode não ter (“Nós acreditamos que...”, na suposição de que o “nós” esteja representando um grupo mais amplo do que aquele que é legítimo supor). Nesses casos, é bom aplicar a famosa frase popular, “nós quem, cara pálida?”. Tudo isso não significa dizer que não se deve jamais generalizar. Trata-se apenas de uma questão de prudência e cuidado. Às vezes, pode-se “salvar” uma generalização aplicando-se uma expressão atenuante ou limitante. Em vez de simplesmente dizer “em todos os casos”, por exemplo, pode-se afirmar, de forma mais modesta, “em muitos casos”, “nos casos conhecidos”, “nos casos examinados”, etc. E existem casos, evidentemente, em que a generalização é justificável.

Muitos dos argumentos que ouvimos sobre questões públicas e políticas baseiam-se em generalizações indevidas ou apressadas. Assim, por exemplo, quando se argumenta que “se proibíssemos filmes violentos na televisão, haveria menos violência juvenil”, está-se utilizando um argumento com base numa generalização indevida. Neste caso, não se trata apenas de que a generalização se baseia num número insuficiente de casos, mas, de forma muito mais importante, trata-se de uma generalização que talvez jamais poderá ser feita, considerando-se a complexidade dos fatores que causam a violência juvenil. Trata-se de uma simplificação.

2. Argumentos do tipo non sequiur - incorremos nesta falha de raciocínio quando deduzimos de uma dada premissa uma conclusão com a qual ela não tem qualquer conexão. Essa falácia é evidente quando nós utilizamos alguma partícula de ligação entre a premissa e a conclusão, como neste exemplo: “É evidente que o discurso constitui a subjetividade, pois todo discurso é um componente essencial de relações de poder”. (Qual é a premissa? Qual é a conclusão?). Ela é menos evidente quando a ligação está apenas implícita: “O discurso é um componente essencial das relações de poder. Ele é um elemento importante na constituição da subjetividade”. De uma maneira ou de outra, é importante examinar o que escrevemos para flagrar as passagens em que estabelecemos relações entre proposições cujas conexões não estão demonstradas.

 3.  Argumentos circulares - caímos nesse tipo de falácia quando utilizamos para provar ama proposição uma outra proposição que não é nada mais do que a mesma proposição inicial sob outra forma. Exemplo: “E evidente que o discurso constitui a subjetividade, pois a subjetividade é um produto do discurso”. Assim colocada, parece evidentemente ridícula, mas trata-se de uma falácia que é encontrada muito mais frequentemente do que se pensa.

Marcadores linguísticos da argumentação

A tabela seguinte lista alguns dos principais marcadores linguísticos de uma sequencia argumentativa:



Exercícios

1.      Considere o seguinte trecho da “Meditação Segunda” das Meditações de Descartes (Obra escolhida, Bertrand Brasil, p. 125):

O que poderá (...) ser considerado verdadeiro? Talvez nenhuma outra coisa a não ser que nada há no mundo de certo. (...) Eu me persuadi, pois, de que nada havia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espírito algum, nem corpo algum. Persuadi-me também, portanto, de que eu não existia? Certamente não: eu existia sem dúvida, já que eu me persuadi ou apenas pensei alguma coisa. Mas suponhamos que haja algum enganador, não sei qual, muito poderoso e muito ardiloso que empregar (toda a sua indústria em engancir-me sempre). Não há, pois, dúvida alguma de que sou, se ele me engana; e, por mais que me engane, não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar alguma coisa. De sorte que, após ter pensado bastante nisso e de ter examinado cuidadosamente todas as coisa, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira, todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito.
(Com pequenas modificações, com o devido perdão de Descartes)
           
Neste trecho. Descartes chega duas vezes à conclusão “eu existo”. Refaça o raciocínio de Descartes, destacando, em cada caso, as premissas e as conclusões.

2.      Considere o seguinte trecho de Vigiar e punir, de Foucault.

A prisão não deve ser vista como uma instituição inerte, que volta e meia teria sido sacudida por movimentos de reforma. A “teoria da prisão” foi seu modo de usar constante, mais que sua crítica incidente - uma de suas condições de funcionamento. A prisão fez sempre parte de um campo ativo onde abundarem os projetos, os remanejamentos, as experiências, os discursos teóricos, os testemunhos, os inquéritos. Em torno da instituição carcerária, toda uma prolixidade, todo um zelo. (Vozes, 22a ed., p. 198).

Qual é a conclusão do raciocínio desenvolvido neste parágrafo? Quais as premissas que levam a essa conclusão?

3.      Considere o capítulo 1 do livro Identidade e diferença. Leia os parágrafos iniciais (até p. 9, terminando na frase “A identidade é, assim, marcada pela diferença”). A autora desenvolve todo um raciocínio, para desenvolver uma tese, para chegar a uma conclusão. Qual é a tese? Que método ela utiliza para desenvolver essa tese? Agora, partindo da mesma tese, desenvolva-a por meio de um outro método.

4.      Considere o segundo parágrafo da p. 17 do mesmo texto. Qual é o argumento principal deste parágrafo? Qual a estratégia principal da autora para desenvolver essa conclusão?
    
    5.       A frase “O outro cultural é sempre um problema, pois coloca permanentemente em xeque nossa própria identidade” (Identidade e diferença, p. 97) pode ser considerada um “entimema”. Isto é, a premissa maior ou o pressuposto está implícito, na suposição de que ele é aceito, de forma partilhada, pelo autor e pelo leitor. Reconstrua a frase em termos do silogismo clássico, destacando a premissa maior implícita.

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