segunda-feira, 28 de abril de 2014

Como utilizar as palavras alheias

Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Educação
Argumentação, Estilo, Composição: Introdução à Escrita Acadêmica
Tomaz Tadeu da Silva

Como utilizar as palavras alheias

Havia, invariavelmente, no esquema tradicional de redação de teses e dissertações, uma seção ou capítulo com o titulo de revisão da literatura. No costume atual, há uma flexibilidade muito maior e é raro ver-se um trabalho  acadêmico que tenha uma seção separada com esse título. Não é preciso, entretanto, invocar a autoridade de teóricos ilustres para concluir que todo texto e toda escrita é, em grande parte, uma questão de citação. De uma maneira ou de outra, escrever é citar. É uma afirmação que, com mais razão, se pode fazer a respeito do trabalho acadêmico, na medida em que se trata de um texto em que a comprovação textual deve ser rigorosamente observada. Mesmo que espalhadas pelo trabalho como um todo e não mais concentradas em um capítulo, as referências aos textos alheios são uma parte integral e importante de qualquer texto acadêmico.

Parece haver, entretanto, alguma dificuldade, entre aspirantes a mestres ou doutores, em lidar com a questão da citação e das referências a fontes alheias. Essas dificuldades vão desde a confusão entre os diversos tipos de utilização das palavras alheias - paráfrase, citação textual, sínteses - até ao discernimento sobre o que citar, passando por questões éticas, como o plágio. Por outro lado, são praticamente inexistentes, na literatura, orientações sobre a questão das citações e das referências textuais em trabalhos acadêmicos Há, evidentemente, uma vasta literatura normativa sobre o assunto, mas essas normas não abordam, obviamente, importantes questões estilísticas e até mesmo éticas relacionadas à questão da citação em teses e dissertações. As sugestões e exemplos que se seguem têm o objetivo preencher um pouco essa lacuna.

1         1.    Distinguir os diversos tipos de citações

Para utilizar de forma eficaz e apropriada as referências textuais, é importante, antes de mais nada, saber distinguir entre as diversas formas de utilização das palavras alheias. Podemos classificá-las nas seguintes categorias.

Citação textual. É a citação em que se transcreve, em maior ou menor extensão, as palavras textuais de um autor. Elas podem se resumir a uma única frase ou estender-se a um parágrafo inteiro. A citação textual é assinalada, se curta, por meio de aspas e no interior do parágrafo ou, se longa, por um parágrafo recuado relativamente aos parágrafos normais.

Paráfrase. As palavras citadas são “traduzidas” na linguagem de quem cita. É preciso ter em mente, neste caso, que ao parafrasear está-se implicitamente reivindicando uma espécie de autoria (apenas para a paráfrase, evidentemente) e é por isso muito importante que as palavras e a sintaxe utilizadas sejam realmente próprias. Não se pode apresentar como paráfrase aquilo que seria, real e legitimamente, uma citação textual. Haveria aí uma certa fraude. Em outro item, darei um exemplo de uma paráfrase legítima e de uma falsa paráfrase.

Síntese. Trata-se também de uma paráfrase, mas de uma passagem mais longa, talvez de um capítulo ou até mesmo de um livro inteiro e, portanto, muito menos colada, em comparação com a paráfrase de apenas uma ou duas frases, ao texto original.

2.      Organizar a exposição em tomo de um problema ou de uma questão

Conhecemos muito bem aquele tipo de texto que se resume a uma sucessão de citações ou paráfrases do tipo “Segundo Fulano de Tal...”, “Para Fulano de Tal...”, “Como disse Fulano de Tal...”. E talvez a maneira menos eficaz e menos imaginativa da utilização de palavras alheias. Evite-a a todo custo!

Uma boa maneira de evitar esse encadeamento de invocações da autoridade alheia consiste em organizar a exposição em torno de uma questão ou de um problema. Se a sua exposição tiver um foco ou um tema central, você irá invocar as palavras alheias apenas para dar apoio às suas ideias a respeito desse tema, ou para contrastar com o que você pensa sobre o tema, ou ainda para comparar o que diferentes autores dizem, concordando ou divergindo, sobre o tema em questão.

Se você não tiver um tema ou problema bem definido, você irá fatalmente invocar a palavra alheia de maneira errática e casual e a propósito de qualquer coisa.

O foco não deve ser, nunca, um autor determinado, mas o seu problema ou o seu tema. Ou seja, não se trata de saber o que um autor determinado tem a dizer sobre qualquer coisa, mas apenas e especificamente sobre o problema que você está tratando.


3.      Utilizar citações textuais de forma limitada e moderada

Evite utilizar citações textuais a propósito de toda e qualquer coisa. As citações textuais devem ter uma justificação precisa. As palavras textuais do autor são tão importantes e tão precisas que não podem ser referidas de outra maneira? É preciso, por uma razão ou outra, destacar que este autor disse precisamente estas palavras? As palavras textuais de um autor precisam ser citadas porque você vai fazer alguma utilização específica delas (como contestá-las, por exemplo)? Em suma, não devemos fazer uma citação textual simplesmente porque as palavras do autor citado nos pareceram particularmente bonitas ou para compensar nossa incapacidade de utilizar palavras próprias.

4.      Evitar citações textuais longas

Uma citação textual longa é raramente justificável. Em geral, uma citação longa - correspondente, por exemplo, à extensão de um parágrafo - contém evidentemente um conjunto relativamente amplo e complexo de ideias. Na medida em que o objetivo de uma citação textual é apoiar uma ideia própria ou compará-la com uma ideia própria ou de um terceiro autor, haverá uma falta de correspondência entre a abrangência da citação e a ideia mais limitada que se está buscando desenvolver. Procure verificar, como leitor, quais partes específicas de uma citação longa de um texto que você está lendo têm relação direta com a ideia que está sendo desenvolvida Em geral, apenas uma parte restrita da citação guarda uma relação direta e especifica com o texto primário. As outras acabam apenas por distrair a atenção do foco principal do tema. Sempre que se sentir tentado a fazer uma citação longa, pergunte-se se uma citação menor, de apenas uma ou duas frases, não seria mais apropriada. Lembre-se: seu objetivo não é mostrar como o autor citado escreve bem ou como expressa bem uma determinada ideia, mas de fazer uso das palavras dele para suas próprias finalidades. Não se trata de mostrar o quanto este ou aquele autor é bom, mas de usá-lo para que o seu texto seja bom. Não permita que as palavras alheias sejam o protagonista principal do seu texto. Utilize-as apenas como artista coadjuvante.

5.             5.   Adquira o hábito de tomar notas em forma de paráfrases

Se você tem dificuldade em se descolar das palavras textuais dos textos que você está estudando e que irá utilizar para escrever o seu próprio texto, adquira o hábito de já resumi-los por meio de paráfrases. Comece por resumir cada parágrafo por meio de uma única frase. Para isso é importante que você, ao ler, utilize um marcador para sublinhar apenas palavras-chave ou ideias-chave e não parágrafos inteiros. Lembre-se: quem destaca tudo não destaca nada. A partir dessas marcações, tente resumir o parágrafo em uma única frase, curta e sintética, mas que contenha sujeito e predicado e não seja apenas o anúncio de um tema. Em um texto que trate, por exemplo, da questão da diferença e da identidade cultural, se poderia resumir, talvez, um parágrafo inteiro pela frase “a representação é central na construção da identidade cultural” e não simplesmente por uma expressão tal como “o papel da representação na construção da identidade cultural”. Essa última formulação apenas informa de que temas trata o parágrafo, mas não diz nada sobre qual a relação entre eles. Uma ideia expressa sempre uma RELAÇÃO entre termos e essa relação só pode ser expressada por um verbo que LIGUE as palavras correspondentes a essas ideias. Apenas uma frase com sujeito e predicado pode expressar essa relação.

A partir dessas paráfrases de parágrafos (você não precisa, evidentemente, parafrasear todos os parágrafos, mas apenas aqueles que parecem relevantes para o seu problema), você poderá, então, tentar fazer um resumo do texto inteiro. Com isso você não apenas terá, ao final, um material que poderá, com pequenas modificações, ser aproveitado diretamente no seu texto, mas, e de forma mais importante, irá adquirindo um hábito que permitirá uma progressiva capacidade de descolamento dos textos originais.

6.      Distinga cuidadosa e rigorosamente suas próprias ideias e palavras das palavras e ideias alheias

Não permita nenhuma ambiguidade que possa fazer com que o leitor não possa distinguir não apenas quais ideias são suas e quais ideias são do autor citado, mas também quais palavras são suas e quais palavras são do autor citado. E preciso utilizar marcadores linguísticos que permitam que o leitor possa fazer facilmente essas distinções. Preste atenção especial às passagens entre a sua voz e a voz alheia. Se você está parafraseando um autor, marque precisamente onde termina a paráfrase e onde começa sua própria opinião. Sabemos, como leitores de Bakhtin, que todo discurso é uma polifonia de vozes, mas é preciso deixar claro a quem pertence cada voz. Cada uma das vozes deve ser rigorosamente marcada. “Aqui é este autor que está falando”, “agora sou eu mesmo que estou falando”, “aqui termina o que ele estava dizendo e começa o que eu mesmo quero dizer”.

7.      Evite as introduções óbvias tais como “Segundo Fulano de Tal”. “Como disse Fulano de Tal”. “Conforme Fulano de Tal”

Se o seu texto estiver organizado em torno de uma questão ou de uma problemática, como foi sugerido, você dificilmente apelará para introduções óbvias como as referidas no título deste item. Não é que não se possa, nunca, utilizar um desses recursos, mas o melhor é integrar as citações ao texto de uma forma mais elegante e natural, sem precisar recorrer à apelação óbvia. Você até pode utilizar isso como critério para avaliar o seu texto: se você estiver recorrendo muito frequentemente a esse tipo de introdução será provavelmente porque há, antes de mais nada, um problema com o tipo de organização e estruturação de seu texto.

8.      Não apresente como paráfrase o que é. na verdade, uma citação textual disfarçada

Obviamente, apresentar ideias e palavras alheias como se fossem próprias é a forma mais evidente de plágio. Há, entretanto, uma forma de plagio menos evidente, que consiste na apresentação de paráfrases que escondem, na verdade, legítimas citações textuais. Isto é, apresentam-se, sem aspas, como se tivessem sido redigidas com as próprias palavras, ideias que estão expressas de forma muito similar à do autor citado. É uma forma disfarçada de citação textual. Em geral, esse tipo de paráfrase denuncia, na verdade, uma má assimilação do pensamento alheio. Quem faz uma verdadeira apropriação das ideias de um autor, deve ser também capaz de expressá-las de maneira própria. Veja os exemplos abaixo e compare:

A citação original (textualmente):

É necessário deixar bem claro: não pretendo afirmar que o sexo não tenha sido proibido, bloqueado, mascarado ou desconhecido desde a época clássica; nem mesmo afirmo que a partir dai ele o tenha sido menos do que antes. Não digo que a interdição do sexo é uma ilusão; e sim que a ilusão está em fazer dessa interdição o elemento fundamental e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do que foi dito do sexo a partir da Idade Moderna. Todos esses elementos negativos - proibições, recusas, censuras, negações - que a hipótese repressiva agrupa num grande mecanismo central destinado a dizer não, sem dúvida, são somente peças que têm uma função loca! e tática numa colocação discursiva, numa técnica de poder, numa vontade de saber que estão longe de se reduzirem a isso (Michel Foucault, História da sexualidade, v. 1, p. 17).

Uma citação textual disfarçada de paráfrase (inaceitável)

Foucault não argumenta que o sexo tenha sido proibido e bloqueado desde a época clássica ou que tenha sido menos depois disso. Ele tampouco diz que a proibição do sexo seja um ilusão. A ilusão, para ele, está em fazer dessa proibição o elemento central e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do sexo na Idade Moderna. Para Foucault, todos os traços negativos, tais como proibições, recusas e negações, que para a hipótese repressiva constituiriam um grande mecanismo central da negação, não passam de peças que têm uma função local e tática num aparato discursivo, numa técnica de poder, numa vontade de saber que não se reduzem a isso.

Uma paráfrase legítima (aceitável)

Foucault não pretende negar que depois da Época Clássica houve uma forte repressão do sexo. A questão, para ele, não está em negar a realidade dessa repressão. O que ele questiona é que se possa compreender a história do sexo na Idade Moderna tendo essa repressão como elemento central. Para Foucault, não é a negação do sexo que é o mais importante, mas sim as formas pelas quais o sexo foi colocado em um discurso que é parte integrante de um processo mais amplo, constituído, além disso, por técnicas de poder e por uma vontade de saber.

O plágio não se caracteriza apenas pela transcrição de frases inteiras de um outro autor. Pode-se considerar plágio também a transcrição, sem marcação de autoria, de uma simples expressão. Se uma expressão tem marca registrada, isto é, pertence a um autor específico, colocá-la sempre entre aspas. Observe a seguinte passagem:

E em todas essas medidas a criança não deveria ser apenas um objeto mudo e inconsciente de cuidados decididos exclusivamente entre adultos; impunha-se-lhe um certo discurso razoável, limitado, canônico e verdadeiro sobre o sexo - uma espécie de ortopedia discursiva (Foucault, História da sexualidade, v. 7, p. 31).

Suponha, agora, que eu resolva utilizar a expressão “ortopedia discursiva” no meu próprio texto. Ela não poderá jamais ser casualmente jogada no texto como se fosse de minha própria autoria, sem nenhuma marcação que assinale claramente sua autoria, neste caso, Foucault. Ela precisará estar assinalada com aspas e deverá ficar claro que foi extraída de um texto de Foucault. Lembre-se: tudo que for caracteristicamente alheio deve ter um sinal de marca registrada. Neste caso, o sinal de marca registrada são as aspas.

Para evitar a tentação de copiar em vez de parafrasear, é aconselhável NUNCA olhar para o texto original enquanto estiver redigindo a paráfrase. Compare os dois textos apenas DEPOIS que você tiver concluído sua própria redação. Nessa comparação, assegure-se de duas coisas: 1 de que você foi fiel à ideia original; 2. de que você foi infiel às palavras originais. Assegure-se, sobretudo, de que você não utilizou nenhuma sequência de palavras que seja coincidente com a do original.

Habitue-se também, ao tomar notas durante a fase de leitura, a marcar claramente quais notas são citações textuais, quais notas constituem interpretações redigidas segundo suas próprias palavras e quais notas constituem transcrições mais ou menos calcadas no texto original.

9.      Utilize citações secundárias apenas excepcionalmente


Há dois tipos de citações secundárias: 1. aquela em que aproveitamos a citação, feita por um autor B, das palavras textuais de um outro autor. A, às quais não temos acesso; 2. aquela em que utilizamos os comentários que um autor B faz sobre as ideias de um outro autor, A. Em geral, evite ambas. A primeira será justificável apenas se o texto original for realmente inacessível e se a citação for absolutamente imprescindível para os propósitos de seu próprio texto. A segunda será evidentemente justificável se o seu objetivo for justamente o de discutir o que diferentes comentaristas disseram sobre o mencionado autor A.

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