Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Educação
Argumentação, Estilo, Composição: Introdução
à Escrita Acadêmica
Tomaz Tadeu da Silva
Como
utilizar as palavras alheias
Havia, invariavelmente, no esquema tradicional de
redação de teses e dissertações, uma seção ou capítulo com o titulo de revisão
da literatura. No costume atual, há uma flexibilidade
muito maior e é raro ver-se um trabalho acadêmico que tenha uma seção separada com
esse título. Não é preciso, entretanto, invocar a autoridade de teóricos
ilustres para concluir que todo texto e toda escrita é, em grande parte, uma
questão de citação. De uma maneira ou de outra, escrever é citar. É uma
afirmação que, com mais razão, se pode fazer a respeito do trabalho acadêmico,
na medida em que se trata de um texto em que a comprovação textual deve ser
rigorosamente observada. Mesmo que espalhadas pelo trabalho como um todo e não
mais concentradas em um capítulo, as referências aos textos alheios são uma parte
integral e importante de qualquer texto acadêmico.
Parece haver, entretanto, alguma dificuldade, entre
aspirantes a mestres ou doutores, em lidar com a questão da citação e das
referências a fontes alheias. Essas dificuldades vão desde a confusão entre os
diversos tipos de utilização das palavras alheias - paráfrase, citação textual,
sínteses - até ao discernimento sobre o que citar, passando por questões
éticas, como o plágio. Por outro lado, são praticamente inexistentes, na
literatura, orientações sobre a questão das citações e das referências textuais
em trabalhos acadêmicos Há, evidentemente, uma vasta literatura normativa sobre
o assunto, mas essas normas não abordam, obviamente, importantes questões
estilísticas e até mesmo éticas relacionadas à questão da citação em teses e
dissertações. As sugestões e exemplos que se seguem têm o objetivo preencher um
pouco essa lacuna.
1 1. Distinguir os diversos tipos de citações
Para utilizar de forma eficaz e apropriada as
referências textuais, é importante, antes de mais nada, saber distinguir entre
as diversas formas de utilização das palavras alheias. Podemos classificá-las
nas seguintes categorias.
Citação textual. É a citação em que se
transcreve, em maior ou menor extensão, as palavras textuais de um autor. Elas
podem se resumir a uma única frase ou estender-se a um parágrafo inteiro. A
citação textual é assinalada, se curta, por meio de aspas e no interior do parágrafo
ou, se longa, por um parágrafo recuado relativamente aos parágrafos normais.
Paráfrase. As palavras citadas são
“traduzidas” na linguagem de quem cita. É preciso ter em mente, neste caso, que
ao parafrasear está-se implicitamente reivindicando uma espécie de autoria
(apenas para a paráfrase, evidentemente) e é por isso muito importante que as
palavras e a sintaxe utilizadas sejam realmente próprias. Não se pode
apresentar como paráfrase aquilo que seria, real e legitimamente, uma citação
textual. Haveria aí uma certa fraude. Em outro item, darei um exemplo de uma
paráfrase legítima e de uma falsa paráfrase.
Síntese. Trata-se também de uma
paráfrase, mas de uma passagem mais longa, talvez de um capítulo ou até mesmo
de um livro inteiro e, portanto, muito menos colada, em comparação com a
paráfrase de apenas uma ou duas frases, ao texto original.
2.
Organizar a exposição em tomo de um problema ou de uma questão
Conhecemos muito bem aquele
tipo de texto que se resume a uma sucessão de citações ou paráfrases do tipo
“Segundo Fulano de Tal...”, “Para Fulano de Tal...”, “Como disse Fulano de
Tal...”. E talvez a maneira menos eficaz e menos imaginativa da utilização de
palavras alheias. Evite-a a todo custo!
Uma boa maneira de evitar
esse encadeamento de invocações da autoridade alheia consiste em organizar a
exposição em torno de uma questão ou de um problema. Se a sua exposição tiver
um foco ou um tema central, você irá invocar as palavras alheias apenas para
dar apoio às suas ideias a respeito desse tema, ou para contrastar com o que
você pensa sobre o tema, ou ainda para comparar o que diferentes autores dizem,
concordando ou divergindo, sobre o tema em questão.
Se você não tiver um tema ou
problema bem definido, você irá fatalmente invocar a palavra alheia de maneira
errática e casual e a propósito de qualquer coisa.
O foco não deve ser, nunca, um autor
determinado, mas o seu problema ou o seu tema. Ou seja, não se
trata de saber o que um autor determinado tem a dizer sobre qualquer coisa,
mas apenas e especificamente sobre o problema que você está tratando.
3. Utilizar citações textuais de forma limitada
e moderada
Evite utilizar citações textuais a propósito
de toda e qualquer coisa. As citações textuais devem ter uma justificação
precisa. As palavras textuais do autor são tão importantes e tão precisas que
não podem ser referidas de outra maneira? É preciso, por uma razão ou outra,
destacar que este autor disse precisamente estas palavras? As palavras
textuais de um autor precisam ser citadas porque você vai fazer alguma
utilização específica delas (como contestá-las, por exemplo)? Em suma, não
devemos fazer uma citação textual simplesmente porque as palavras do autor
citado nos pareceram particularmente bonitas ou para compensar nossa
incapacidade de utilizar palavras próprias.
4. Evitar citações textuais longas
Uma citação textual longa é raramente
justificável. Em geral, uma citação longa - correspondente, por exemplo, à
extensão de um parágrafo - contém evidentemente um conjunto relativamente
amplo e complexo de ideias. Na medida em que o objetivo de uma citação
textual é apoiar uma ideia própria ou compará-la com uma ideia
própria ou de um terceiro autor, haverá uma falta de correspondência entre a
abrangência da citação e a ideia mais limitada que se está buscando
desenvolver. Procure verificar, como leitor, quais partes específicas de uma
citação longa de um texto que você está lendo têm relação direta com a ideia
que está sendo desenvolvida Em geral, apenas uma parte restrita da citação
guarda uma relação direta e especifica com o texto primário. As outras acabam
apenas por distrair a atenção do foco principal do tema. Sempre que se sentir
tentado a fazer uma citação longa, pergunte-se se uma citação menor, de apenas
uma ou duas frases, não seria mais apropriada. Lembre-se: seu objetivo não é
mostrar como o autor citado escreve bem ou como expressa bem uma determinada ideia,
mas de fazer uso das palavras dele para suas próprias finalidades. Não se trata
de mostrar o quanto este ou aquele autor é bom, mas de usá-lo para que o seu texto seja bom. Não
permita que as palavras alheias sejam o protagonista principal do seu texto. Utilize-as
apenas como artista coadjuvante.
5. 5. Adquira o
hábito de tomar notas em forma de paráfrases
Se você tem dificuldade em
se descolar das palavras textuais dos textos que você está estudando e que irá utilizar para escrever o seu próprio texto, adquira o hábito de já resumi-los
por meio de paráfrases. Comece por resumir cada parágrafo por meio de uma única
frase. Para isso é importante que você, ao ler, utilize um marcador para
sublinhar apenas palavras-chave
ou ideias-chave
e não parágrafos inteiros. Lembre-se: quem destaca tudo não destaca
nada. A partir dessas marcações, tente resumir o parágrafo em uma única frase,
curta e sintética, mas que contenha sujeito e predicado e não seja apenas o
anúncio de um tema. Em um texto que trate, por exemplo, da questão da diferença
e da identidade cultural, se poderia resumir, talvez, um parágrafo inteiro pela
frase “a representação é central na construção da identidade cultural” e não
simplesmente por uma expressão tal como “o papel da representação na construção
da identidade cultural”. Essa última formulação apenas informa de que temas
trata o parágrafo, mas não diz nada sobre qual a relação entre eles. Uma
ideia expressa sempre uma RELAÇÃO
entre termos e essa relação só pode ser expressada por um
verbo que LIGUE as palavras correspondentes a essas ideias. Apenas uma frase
com sujeito e predicado pode expressar essa relação.
A
partir
dessas paráfrases de parágrafos (você não precisa, evidentemente, parafrasear
todos os parágrafos, mas apenas aqueles que parecem relevantes para o seu
problema), você poderá, então, tentar fazer um resumo do texto inteiro. Com isso
você não apenas terá, ao final, um material que poderá, com pequenas
modificações, ser aproveitado diretamente no seu texto, mas, e de forma mais
importante, irá adquirindo um hábito que permitirá uma progressiva capacidade
de descolamento dos textos originais.
6.
Distinga cuidadosa e rigorosamente suas próprias ideias e palavras das
palavras e ideias alheias
Não permita nenhuma ambiguidade
que possa fazer com que o leitor não possa distinguir não apenas quais ideias
são suas e quais ideias são do autor citado, mas também quais palavras são suas
e quais palavras são do autor citado. E preciso utilizar marcadores linguísticos
que permitam que o leitor possa fazer facilmente essas distinções. Preste
atenção especial às passagens entre a sua voz e a voz alheia. Se você está
parafraseando um autor, marque precisamente onde termina a paráfrase e onde
começa sua própria opinião. Sabemos, como leitores de Bakhtin, que todo
discurso é uma polifonia de vozes, mas é preciso deixar claro a quem pertence
cada voz. Cada uma das vozes deve ser rigorosamente marcada. “Aqui é este autor
que está falando”, “agora sou eu mesmo que estou falando”, “aqui termina o que
ele estava dizendo e começa o que eu mesmo quero dizer”.
7.
Evite as introduções óbvias tais como “Segundo Fulano de Tal”. “Como
disse Fulano de Tal”. “Conforme Fulano de Tal”
Se o seu texto estiver
organizado em torno de uma questão ou de uma problemática, como foi sugerido,
você dificilmente apelará para introduções óbvias como as referidas no título
deste item. Não é que não se possa, nunca, utilizar um desses recursos, mas o
melhor é integrar as citações ao texto de uma forma mais elegante e natural,
sem precisar recorrer à apelação óbvia. Você até pode utilizar isso como
critério para avaliar o seu texto: se você estiver recorrendo muito frequentemente
a esse tipo de introdução será provavelmente porque há, antes de mais nada, um
problema com o tipo de organização e estruturação de seu texto.
8.
Não apresente como paráfrase o que é. na verdade, uma citação textual
disfarçada
Obviamente, apresentar ideias
e palavras alheias como se fossem próprias é a forma mais evidente de plágio.
Há, entretanto, uma forma de plagio menos evidente, que consiste na
apresentação de paráfrases que escondem, na verdade, legítimas citações
textuais. Isto é, apresentam-se, sem aspas, como se tivessem sido redigidas com
as próprias palavras, ideias que estão expressas de forma muito similar à do
autor citado. É uma forma disfarçada de citação textual. Em geral, esse tipo de
paráfrase denuncia, na verdade, uma má assimilação do pensamento alheio. Quem faz
uma verdadeira apropriação das ideias de um autor, deve ser também capaz de
expressá-las de maneira própria. Veja os exemplos abaixo e compare:
A citação original
(textualmente):
É necessário deixar bem
claro: não pretendo afirmar que o sexo não tenha sido proibido, bloqueado,
mascarado ou desconhecido desde a época clássica; nem mesmo afirmo que a partir
dai ele o tenha sido menos do que antes. Não digo que a interdição do sexo é
uma ilusão; e sim que a ilusão está em fazer dessa interdição o elemento
fundamental e constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do
que foi dito do sexo a partir da Idade Moderna. Todos esses elementos negativos
- proibições,
recusas, censuras, negações - que a hipótese repressiva agrupa num grande
mecanismo central destinado a dizer não, sem dúvida, são somente peças que têm
uma função loca! e tática numa colocação discursiva, numa técnica de poder,
numa vontade de saber que estão longe de se reduzirem a isso (Michel
Foucault, História da sexualidade, v. 1, p. 17).
Uma citação textual disfarçada de paráfrase
(inaceitável)
Foucault não argumenta que o
sexo tenha sido proibido e bloqueado desde a época clássica ou que tenha sido
menos depois disso. Ele tampouco diz que a proibição do sexo seja um ilusão. A
ilusão, para ele, está em fazer dessa proibição o elemento central e
constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do sexo na Idade
Moderna. Para Foucault, todos os traços negativos, tais como proibições,
recusas e negações, que para a hipótese repressiva constituiriam um grande
mecanismo central da negação, não passam de peças que têm uma função local e
tática num aparato discursivo, numa técnica de poder, numa vontade de saber que
não se reduzem a isso.
Uma paráfrase legítima (aceitável)
Foucault não pretende negar que depois da Época
Clássica houve uma forte repressão do sexo. A questão, para ele, não está em
negar a realidade dessa repressão. O que ele questiona é que se possa
compreender a história do sexo na Idade Moderna tendo essa repressão como
elemento central. Para Foucault, não é a negação do sexo que é o mais
importante, mas sim as formas pelas quais o sexo foi colocado em um discurso
que é parte integrante de um processo mais amplo, constituído, além disso, por
técnicas de poder e por uma vontade de saber.
O plágio não se caracteriza apenas pela
transcrição de frases inteiras de um outro autor. Pode-se considerar plágio
também a transcrição, sem marcação de autoria, de uma simples expressão. Se uma
expressão tem marca registrada, isto é, pertence a um autor específico,
colocá-la sempre entre aspas. Observe a seguinte passagem:
E em todas essas medidas a criança não
deveria ser apenas um objeto mudo e inconsciente de cuidados decididos
exclusivamente entre adultos; impunha-se-lhe um certo discurso razoável,
limitado, canônico e verdadeiro sobre o sexo - uma espécie de ortopedia discursiva (Foucault, História da
sexualidade, v. 7, p. 31).
Suponha, agora, que eu resolva utilizar a
expressão “ortopedia discursiva” no meu próprio texto. Ela não poderá jamais
ser casualmente jogada no texto como se fosse de minha própria autoria, sem
nenhuma marcação que assinale claramente sua autoria, neste caso, Foucault. Ela
precisará estar assinalada com aspas e deverá ficar claro que foi extraída de
um texto de Foucault. Lembre-se: tudo que for caracteristicamente alheio deve
ter um sinal de marca registrada. Neste caso, o sinal de marca registrada são
as aspas.
Para evitar a tentação de copiar em vez de
parafrasear, é aconselhável NUNCA olhar para o texto original enquanto estiver
redigindo a paráfrase. Compare os dois textos apenas DEPOIS que você tiver
concluído sua própria redação. Nessa comparação, assegure-se de duas coisas: 1
de que você foi fiel à ideia original; 2. de que você foi infiel às
palavras originais. Assegure-se, sobretudo, de que você não utilizou nenhuma
sequência de palavras que seja coincidente com a do original.
Habitue-se também, ao tomar notas durante a fase de leitura, a marcar
claramente quais notas são citações textuais, quais notas constituem
interpretações redigidas segundo suas próprias palavras e quais notas
constituem transcrições mais ou menos calcadas no texto original.
9. Utilize citações secundárias apenas
excepcionalmente
Há dois tipos de citações secundárias: 1.
aquela em que aproveitamos a citação, feita por um autor B, das palavras
textuais de um outro autor. A, às quais não temos acesso; 2. aquela em que
utilizamos os comentários que um autor B faz sobre as ideias de um outro autor,
A. Em geral, evite ambas. A primeira será justificável apenas se o texto
original for realmente inacessível e se a citação for absolutamente imprescindível
para os propósitos de seu próprio texto. A segunda será evidentemente
justificável se o seu objetivo for justamente o de discutir o que diferentes
comentaristas disseram sobre o mencionado autor A.
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