sábado, 22 de fevereiro de 2014

Por uma filosofia semota

Uma fresta

semoto
lat. semōtusaum part.pas. de semovēre ”apartar, arredar, afastar”, de se- ”ideia de separação” + movēre ”mover”; ver mov-
cartão postal
O desejo de vencer o princípio postal: não para aproximá-la, enfim, e levá-la, fazer com que ele vença a distância, mas para que me seja dada, através de você, a distância que me concerne. J.D.

Memórias afetadas

O título deste evento fez-me vacilar diversas vezes. Misturou-me memórias e aversões. Memórias de uma remota experiência de ensino; aversões de uma remota experiência cultural. Permitam-me, inicialmente, ir a elas.
Em torno de uma década, penso eu, estive no interior de Mato Grosso para dar aula aos estudantes de Pedagogia da UFMT, em cursos de programas de interiorização da universidade. Eu e os estudantes ficamos no mesmo hotel. À noite, após o jantar, em reunião de bate-papo, um deles contou-me como era seu cotidiano, na cidade onde morava, bem próxima a garimpos. Falou-me dos assassinatos, dos corpos estendidos em vias públicas que eram recolhidos pelos parentes pela ausência da polícia, falou-me da falta de assistência e de saúde pública. Pareceu-me “terra de ninguém” como se costumava chamar, no senso comum, lugares assim. Ao ouvir o relato, tive a sensação de que as discussões que eu fazia na disciplina de Filosofia eram deslocadas e impertinentes. Discutir o conhecimento, pensava eu, exigia um grau de civilidade maior do que aquela experimentada por aquele moço e seus munícipes. Pareceu-me que o direito era mais adequado do que a filosofia. Esta foi minha sensação. Talvez, até um padre lhes seria melhor professor do que um imoralista como eu.
Também em torno de uma década, à época que cursava meu doutorado, fui apresentado por uma colega de turma a outra pessoa; na apresentação ela disse: Silas é de Cuiabá, mas é muito inteligente.

Filosofia que não é do centro

Nos últimos anos, tenho lido com mais intensidade Nietzsche e Derrida. Na verdade, mais o primeiro do que o segundo, mas me esforço para dar conta de ambos.
Com Nietzsche, aprendi a construir a crítica que esperava fazer ao fenômeno educativo - meu objeto de estudo desde meu ingresso na UFMT em 1995 - de um modo não materialista-histórico-dialético. Como não me afeiçoo ao modo de pensar de Marx, vejo em Nietzsche essa força crítica que faz bem ao pathos da minha posição no mundo. Sua ironia e vitalidade respondem ao meu ânimo.
Por outro lado, Derrida atualiza melhor Nietzsche ao nosso tempo do que qualquer outro filósofo. Digo filósofo porque Derrida está longe de ser um bom comentador de Nietzsche, como é bem sabido. Ao estilo de outros franceses, Derrida faz de Nietzsche o que lhe cai bem; talvez, como dizia Lebrun sobre alguns leitores de Nietzsche, como caixa de ferramenta. Que seja.
Em Derrida, encontro a melhor referência para o que tenho a entregar hoje nesta abertura de evento. E dele tomo um de seus mais importantes projetos de trabalho: a crítica ao logocentrismo. Vejamos isso com mais detimento.
Derrida entende que a filosofia, e, portanto, a cultura ocidental, foi constituída no centramento do significado, ou seja, na significação (como representação mental), na obsessiva busca do conteúdo semântico de um signo linguístico. De certo modo, é do que trata a ordenação do logos como operador de sentido do pensamento e do mundo. Assim, ele dirá que a filosofia, e portanto a metafísica ocidental, é logocêntrica, pois ela é determinada a partir de um fundamento. Assim ele dirá:
Poder-se-ia mostrar que todos os nomes do fundamento, do princípio ou do centro, sempre designaram o invariante de uma presença (eidos, arque, télos, energeia, ousia [[essência, existência, substância, sujeito]]() aletheia, transcendentalidade, consciência, Deus, homem etc). (DERRIDA, 2009, p. 409)
Os nomes da metafísica estão sujeitos à ideia de que são sustentados por um fundamento, logo, estão no centro, na origem do pensamento. Portanto, pensar é sempre um retorno à origem, a uma origem - a da filosofia - e dela que se deve, sempre, partir. É ela que está sempre presente. Ela é o centro.
Para Derrida, esse problema se desdobra em outro: ao dar à razão o centro do pensamento, a metafísica acaba por atribuir ao logos a origem da verdade do ser, inseparável da phoné, vista como substância fônica, que se confunde com o ser como presença. Isso é melhor visto em Sócrates, embora tenha sido Platão aquele que criou o enigma do pharmakon no Fedro.
Bem, mesmo admitindo que a filosofia deixou a Sócrates a palavra falada, a metafísica platônica sustenta a ideia de uma escritura fonética, ou seja, o texto traduz, reflete, expressa, representa o pensamento. Para Derrida, o texto é submetido à palavra, que termina por rebaixá-lo como técnica à serviço da phoné, dependente dela. Não custará muito para que o dualismo, quase maniqueísta, seja construído: o bom texto: natural, vivo inteligível, verdadeiro; o mau texto: artificial, morto, falso. Sobre esse sistema binário que Derrida que operar com a desconstrução, não para solucioná-lo dialéticamente, mas para jogar com seus sentidos, principalmente, com sua função aditiva; em suas palavras: “A ausência de significado transcendental amplia indefinidamente o campo e o jogo da significação.” (DERRIDA, 2009, p. 410)

Um pensamento de descentramento

É preciso ser mais explícito. Pôr sob suspeita a origem com intuito de dar abertura à linguagem como discurso, melhor, ao logos como discurso, e não como ato de flerte matemático do pensamento, é produzir uma noção que subverta o campo de produção significante sustentado por identidades. Aqui, o significado irá operar em um sistema de diferenças e não de identidades.
Derrida realiza este descentramento com o nome de desconstrução. Assim, o significado não possui mais um lugar fixo, um centro, mas, sim, passa a existir como construção substitutiva, suplementar; diante da impossibilidade de um centro, toda palavra se torna discurso, e todo sentido opera em différance. É certo que será necessário desconstruir outros conceitos caros à metafísica, o de sujeito, por exemplo; não farei isto; não é nosso objeto; apenas sinalizo que não vejo ninguém melhor do que Nietzsche para dissolvê-lo.
Assim, o descentramento feito pela desconstrução tratará a filosofia - a história da filosofia - como uma história de um tipo de discurso, cuja marca é da incompletude, da ausência de esgotamento do significado de seus objetos, que vê na noção de totalidade uma peça de ficção. Na verdade, para Derrida, a história da filosofia deveria fazer um movimento de renversement, que eu traduziria por transversão. Primeiro, por inspiração nietzschiana, depois por inspiração heideggeriana. Em Nietzsche, claro que pensei na transvaloração; em Heidegger, cuido-me para evitar o niilismo fraco. Portanto, leio que Derrida propõe uma transversão da história da filosofia: 1) ao jogar com suas oposições clássicas, violentando suas hierarquias; 2) anunciando o que é valorizado e, portanto, o que está recalcado dissimuladamente no texto filosófico; 3) provocando desvio de um significante.
Como descentramento, o gesto desconstrutivo derridiano golpeia a pretensão da filosofia, e de toda a construção ideária ocidental, da primazia sobre outros saberes e textos.

Uma filosofia da margem

Deste modo, acabo por posicionar-me com certa indagação sobre a proposta deste evento, e me pergunto: onde está este rincão?
Lembrei-me d’O homem louco, descrito n’A gaia ciência:
Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? “Para onde foi Deus?” gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos — vocês e eu. (…) Deus está morto! Deus continua morto! (NIETZSCHE, GC § 125)
Peguei minha lanterna. Vi uma escola em Porto Alegre, parceira de um projeto que faço parte: Escola Rincão. Fui ao Google, joguei a palavra. De um lado, o nome de uma pousada em São Paulo: Clube Rincão, Pousada e Lazer; do outro, um município de São Paulo com menos de 11.000 habitantes, ou seja, menor do que o número de alunos da UFMT. Continuei com minha lanterna: uma estudante me disse que é em Várzea Grande, o Rincão do meu Senhor. Pensei em Euclides da Cunha, e seu Os sertões, onde diz, na única ocorrência: “Nenhum pioneiro da ciência suportou ainda as agruras daquele rincão sertanejo, em prazo suficiente para o definir.”. O naturalista, militar e escritor, julgava o sertão rincão demais para um cientista. Perguntei à outra estudante sobre o rincão, ela me disse: (perdoe-me a expressão calã) “me lembra ‘lá na puta que o pariu’”. Gostei dessa.
Ora, pelo gesto desconstrutor, teria de: 1) pôr em questão o dualismo perto-longe - ao modo não dialético -, submetendo-o ao jogo aditivo pela transversão hierárquica dos termos; 2) dizer que o perto é valorizado e o longe recalcado, e vice-versa; 3) desviar o sentido do título proposto à mesa, e para dar efeito de clinâmen, acho que funcionaria se substituirmos o termo inicial da proposta pela expressão da minha mestranda: “Reflexões acerca da importância da filosofia lá na puta que o pariu”. Qual a importância da filosofia lá na puta que o pariu? E, novamente, há algum lugar que seja lá na puta que o pariu?

Uma filosofia semota

Estas minhas breves considerações comparecem para dizer que me preocupa quando geografamos o saber e a filosofia. O risco de adotarmos perspectivas autoritárias e rançosas não é pequeno.
Ainda aposto na necessidade de transvalorarmos nossos valores, como propunha Nietzsche à sua filosofia, o que significa criar novos valores, criar um novo pensamento. É a mesma proposta de Deleuze, em criar conceitos. Esta filosofia, talvez esteja distante das propostas clássicas da metafísica, distância que a coloque no rincão das disciplinas magistrais dos manuais de Filosofia do século XIX ao XXI; talvez sejam conteúdos da filosofia da puta que o pariu. Prefiro chamar de filosofia semota.

Referências

CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Montecristo Editora Ltda. 2012.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2009, 4a. ed.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
XXX Encontro Nacional dos Estudantes de Filosofia
Cuiabá, janeiro de 2014

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Perspectivismo x Relativismo

Ao se deparar com essas palavras, o que elas denotam? O que elas a nós significam? Relativismo poderia ser entendido puramente como não existência de absolutos?

Na filosofia, o relativismo implica em uma designação não assumida por nenhuma escola filosófica e está relacionado à teoria do conhecimento.

Para Platão, conhecimento é uma descoberta alcançada por uma tecnologia e essa tecnologia é a tarefa da filosofia, sendo fundamentalmente racional, como uma verdade. Conhecimentos válidos são aqueles logicamente sustentados e constituídos. Por sua vez, as opiniões têm graus de aproximação e distanciamento da verdade. Qual seria então a diferença entre relativismo e a critica que Platão faz a opinião?

Algumas opiniões se aproximam da verdade, mas não são a verdade em si, assim como algumas se afastam da verdade, mas não são necessariamente falsas. Segundo Aristóteles, não é possível a existência de uma ideia falsa, pois a ideia falsa, por natureza, é incompreensível, é aquela que se apresenta ilógica.

A questão então é saber qual o grau de distância ou de proximidade que essas opiniões chegam da verdade.

O relativismo por sua vez, admite que dois lados tenham posições lógicas sobre algo, admite-os como verdadeiros. Comporta a possibilidade da verdade entre conhecimentos opostos, contraditórios, posições distintas, mas que se valem das mesmas constituições lógicas. As opiniões não são sustentadas nessa mesma base, elas decorrem fundamentalmente de valores, uma apreensão que se tem de uma vida prática, uma experiência cultural.

Em relação ao perspectivismo, Nietzsche dissolve a noção de que o conhecimento é “verdadeiro” e que existe uma verdade. Afirmando que o conhecimento não precisa ter métrica e, assim como a opinião e a ciência, é sustentado por valores. Como diferenciar então conhecimento perspectivo de opinião ou relativismo?

O conhecimento para Nietzsche é ato de criação e se este não for oriundo de um ato de criação, se torna a repetição de algo já estabelecido. Só é conhecimento aquilo que é criado e produzido. Sendo assim, o que nos garante que esse conhecimento é verdadeiro? Nada. Quando um conhecimento é criado, este o faz como ato de potência daquele que o produziu, então o risco de ficar preso a esse enunciado como verdadeiro é eminente.

Ao criar conhecimento, o filósofo cria perspectivas e as experimenta, fugindo da adoção de perspectivas já existentes. Sendo a experimentação seu ato validador, ou seja, para se criar conhecimento é preciso adotar um “ponto de vista” para elaborar a criação de um novo, que pode ou não diferir do anterior, mas só podemos validar a existência desta diferenciação a partir da experimentação. Perspectivas não devem ser adotadas, devem ser criadas. 

Nietzsche indica que o procedimento para a produção de conhecimento é dizer sim à vida, o que torna possível experimentar diversas perspectivas. Para Nietzsche, experimentar é viver. Entretanto, dizer sim a vida não é aceitar tudo que vem, a passividade frente à vida denota fraqueza, também não é negar tudo que vem, é saber que viver a vida é fonte rica de experimentações. Porém, aqui se constitui um problema, tentarmos a partir de uma experiência, torná-la outra, transformar o normal em patológico ou o patológico em normal, o bom em mau ou o mau em bom, se algo é experimentado como mau não há razão nenhuma para torná-lo bom mesmo que o resultado venha a ser agradável. As possibilidades de experiência não podem ser misturadas. 

Nesse sentido o perspectivismo não nos ajuda a julgar conhecimentos, pois eles não são diferentes quanto a qualidade acadêmica. Não experimentar outras perspectivas implica em não criar outros conhecimentos, se o que nós produzimos não é criação é apenas uma adoção de valores. Como se pode notar, a criação não é fácil, como solução, Nietzsche adota um estilo aforismático, permitindo experimentar perspectivas. 

Por fim, o perspectivismo não aceita a avaliação de verdades. Ele é a capacidade de produzir filosofia de diversidades de circunstâncias da vida e experimentar esses pensamentos. As criações mais fascinantes são as ambíguas, onde não se consegue dizer se algo é bom ou ruim, ou fazer o exercício de tornar algo que é bom em ruim e vice versa, mesmo que dissolver os juízos de valores seja algo muito difícil. Se não formos capazes de criar nada que não seja a partir de um livro ou algo que nos tenha sido posto, também não temos perspectiva sobre nada.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Como estudar um texto filosófico?

Aqui vão algumas dicas: 

1º - Tudo começa e termina no texto, por isso, a leitura dele é fundamental. Lutar com o texto é crucial. Por isso, o primeiro ato de leitura é o texto. Cuide-se ao ler. Desconfie que você entendeu o que está escrito; desconfie que você não entendeu o que está escrito. Pois bem, ao ler atentamente, não pense que você tirará ideias importantes: um livro não é uma caixa de realejo, composto de frases fortes que nos dão sabedoria. Um livro é um discurso. Ele oferece ideias, desenvolve argumentos, tenta comunicar um estado interno, um pensamento. Todo texto tem um objetivo. Ele nem sempre é indicado com notas, setas e cores. A arte de ler filosofia é esforçar-se por apreender este objetivo, mesmo que ele não seja evidente. Mesmo errando, faça o exercício e se pergunte: qual o objetivo deste texto? Que ideia ele quer entregar?

2º - Usar próteses ajuda. As mais comuns são as biografias e os comentários. Comece pelas biografias. Mas não procure nelas os dramas psicológicos do contexto de elaboração: procure por interlocutores. Os dramas ajudam, o contexto histórico ajuda, mas, o crucial são os interlocutores. Filosofia é feita de diálogo: procure pelos debatedores. Recorra aos comentários depois de brigar muito com o texto. Um filósofo não muda de tema e de adversário ou herói a cada semana. Ao escrever, um filósofo dispara um ideia que vai sendo testada, ampliada, revista ao longo de um tempo, até que ela não satisfaça mais a curiosidade do filósofo. Novamente, a biografia pode ajudar a encontrar estes temas/períodos dos escritos de um filósofo. Preste atenção se não há outros livros sendo escritos no mesmo período: quais temas, estilos, pathos são postos em movimento.

3º - Por fim, visite os comentadores. Veja no que vocês concordam, e no que não concordam. Veja se o comentário te alerta para algo que lhe tenha escapado: uma informação relevante, uma leitura feita por outros, a revisão das abordagens, etc. Isso leva tempo. Não muito, mas alguns dias.