segunda-feira, 31 de março de 2014

9 maneiras de fechar um texto

Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Educação
Argumentação, Estilo, Composição: Introdução à Escrita Acadêmica
Tomaz Tadeu da Silva

9 maneiras de fechar um texto

O parágrafo final, tal como o inicial, tem uma posição privilegiada na estrutura de um texto. É ele que dá a amarração final ao texto. Evidentemente, o tom e a forma do parágrafo final, assim como acontece com o parágrafo inicial, depende muito da natureza do texto. Assim, um texto puramente técnico, descritivo, não poderia terminar com algum tipo de apelo de ação, enquanto, por outro lado, tal tipo de apelo se ajustaria bem a um texto de caráter político, religioso ou moral. Em geral, entretanto, espera-se que o parágrafo final, de alguma forma, sintetize e resuma os temas principais do texto.

1. Interpelação direta ao leitor

Em geral, em textos dissertativos, utilizamos um modo de endereçamento ou interpelação impessoal e indireto (“deve-se”, “devemos”, “sabe-se”, “sabemos”, etc.). A adoção de um modo de interpelação direta (“ei, você aí!”), em geral repentina e inesperada, como nos exemplos abaixo, tem um efeito retórico bastante interessante.

Integre-se, pois, à corrente. Pluge-se. Ligue-se. A uma tomada. Ou a uma máquina. Ou a outro humano. Ou a um ciborgue. Torne-se um: devir-ciborgue. Eletrifique-se. O humano se dissolve como unidade. É só eletricidade. Tá ligado?
(Tomaz Tadeu da Silva, “Nós, ciborgues: o corpo elétrico e a dissolução do humano”, Antropologia do ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000: 9-17. P. 16).

Hoje, o campo expressa não o desejo de afirmação do estereótipo envelhecido da bicha louca, mas o desejo de empreendermos todos, das mais diversas sexualidades e sensualidades, uma nova educação sentimental, não pela busca da autenticidade de sentimentos cultivados pelos românticos, mas pela via da teatralidade, quando, apesar da solidão, para além da dor maior da exclusão, da raiva e do ressentimento, possa ainda se falar em alegria, em felicidade. Faça uma pose. Eu faço. Agora.
(Denilson Lopes. “Terceiro manifesto camp”. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio: Aeroplano, 2002: 89-120. P. 113)

2. Uma história, uma anedota

Questionado sobre sua História da sexualidade, Foucault respondeu, certa vez, que não pretendia escrever uma arqueologia das fantasias sexuais, mas sim uma arqueologia do discurso sobre a sexualidade e que esse discurso era “uma relação entre o que fazemos, o que estamos obrigados a fazer, o que nos está permitido fazer, o que nos está proibido fazer no campo da sexualidade; e o que está proibido, permitido, ou é obrigado a dizer sobre nosso comportamento sexual” (Foucault, 1996, p. 91). Acho que foi disso que procurei tratar aqui: das formas e das instâncias onde aprendemos esse discurso, de nossa apropriação e uso de uma linguagem da sexualidade que nos diz, aqui, agora, sobre o quer falar e sobre o que silenciar, o que mostrar e o que esconder, quem pode falar e quem deve ser silenciado. Procurei mostrar, também, que podemos (e devemos) duvidar dessas verdades e certezas sobre os corpos e a sexualidade, que vale a pena pôr em questão as formas como eles costumam ser pensados e as formas como identidades e práticas têm sido consagradas ou marginalizadas. Ao fazer a história ou as histórias dessa pedagogia talvez nos tornemos mais capazes de desarranjá-la, reinventá-la e torná-la plural.
(Guacira Lopes Louro. “Pedagogias da sexualidade”. In Guacira Lopes Louro. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999: 9-34. Parágrafo final, p. 33)

3. Uma pergunta

Mas a questão da sexualidade permanecerá central para os debates sociais e morais? (...) O trono do “Rei Sexo” está começando a balançar? E, se isso está acontecendo, qual é o seu significado? Tudo que aprendemos sobre a história da sexualidade nos diz que a organização social da sexualidade nunca é fixa ou estável. Ela é modelada sob circunstâncias históricas complexas. Na medida em que entramos no período conhecido como “pós-modernidade”, é provável que vejamos uma nova e radical mudança nos modos como nos relacionamos com nossos corpos e com suas necessidades sexuais. O desafio será compreender, de uma forma mais efetiva do que no período da modernidade, os processos que estão em ação nesse campo.
(Jeffrey Weeks. “O corpo e a sexualidade”. In Guacira Lopes Louro. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999: 35-82. Parágrafo final, p. 80)

Instituídos por este novo complexo científico-pedagógico, os Pareceres Descritivos exercem um novo poder de julgar, por colocar a criança em processo permanente de claridade, de produção, de normalização e patologização, até que ela mesma interiorize sua própria transparência e possa se tornar um civilizado indivíduo ocidental auto-normalizado. A suavidade de seu olhar, dita humanizante, está investida como técnica de poder, e é isto que o discurso educacional contemporâneo prossegue, reiteradamente, escamoteando. Até quando continuará olhando para esses olhos de poder sobre o currículo, de maneira inocente?
(Sandra Corazza. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação. Petrópolis: Vozes, 2001. Parágrafo final do capítulo 2, p. 55)

4. Apelo à mudança (pessoal, social, etc.)

Como sabemos, trata-se de uma maneira muito comum de concluir um texto na literatura educacional. Embora perfeitamente legítima, é possível pensar em outras maneiras de fechar um texto. Além disso, ainda que permanecendo no gênero da “prescrição”, pode-se pensar em formas de variá-lo.

Para que essas conversas se tornem até mesmo pensáveis em relação à educação é preciso que as educadoras e os educadores se tornem curiosos sobre suas próprias conceptualizações sobre o sexo, e ao fazê-lo, se tornem abertos também para as explorações e as curiosidades de outros relativamente à liberdade do “domínio imaginário”. (...) Quando pudermos estudar as histórias que o sexo provoca, as perversidades que ele pode imaginar e exercitar, então, provavelmente, nos envolveremos também no estudo de onde o conhecimento entra em colapso, torna-se ansioso, é construído outra vez. O currículo movimenta-se em direção ao polimorficamente perverso e à noção de erotismo de Bataille: o problema torna-se, então, o de formular questões que possam desestabilizar a docilidade da educação.
(Deborah Britzman. “Curiosidade, sexualidade e currículo”. In Guacira Lopes Louro. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999: 83-111. Parágrafo final, pp. 109-110)

5. Afirmação de uma convicção pessoal

Motivada pelos testemunhos e pelas reflexões de tantas estudiosas e estudiosos, acredito que o processo de construção dos estudos feministas e os seus desafios atuais são hoje, como foram antes, desafios epistemológicos. (...) Para responder a esses desafios parece necessário que mantenhamos vivas a capacidade de ousar e de transgredir, utilizando criativa e criticamente as teorizações feministas, bem como acolhendo o questionamento de outros campos de estudo. (...)
(Guacira Lopes Louro. Currículo, gênero e sexualidade. Porto: Porto Editora, 2000. Final do capítulo 1, p. 22-3)

6. Reiteração, paráfrase, retomada dos temas principais do texto

É a voz socialmente autorizada que inclui e exclui sujeitos e conhecimentos, determinando não apenas quais as identidades ou os saberes que podem integrar o currículo, mas também como essas identidades e saberes deverão aí ser representados. (...) No interior das instituições educacionais acontece uma parte importante desta disputa e, por isso, somos obrigatoriamente convocados/as. Afinal, qual é o nosso lado?
(Guacira Lopes Louro. Currículo, gênero e sexualidade. Porto: Porto Editora, 2000. Final do capítulo 3, p. 57)

7. Uma citação

É possível concordar com Stuart Hall (2000, p. 104) quando diz que a identidade é um desses conceitos que a perspectiva desconstrucionista colocou “sob rasura”; isto é, conforme explica, um conceito que talvez “não seja mais ‘bom para pensar’ - na sua forma original, não reconstruída”. Parece-me que no terreno da teorização educacional, o conceito de identidade cultural, tomado no seu caráter de multiplicidade, fluidez e instabilidade ainda pode ser útil. (...)
(Guacira Lopes Louro. Currículo, gênero e sexualidade. Porto. Porto Editora, 2000. Penúltimo parágrafo do capítulo 5, p. 107).

8. Seqüência de substantivos/orações substantivas ou adjetivos/oracões adjetivas

Dança-jogo-sonho antidialético e anti-religioso - leve, móvel, aéreo, ubíquo, inocente, gracioso, pueril, irreverente - de Dionísio-Criança, com seus brinquedos. De Dionísio-Constelação, com Ariadne no céu como estrela dançante. De Dionísio-Senhor-do-Eterno-Retomo, que reproduz o diverso no coração da síntese kantiana. Repete a diferença, pela vontade de poder reunida às forças postas em relação pelo acaso. Contraria a adiaforia. Nega o estado terminal e o de equilíbrio. E, acima de tudo isso, opõe-se a nosso caro, e tão custoso. Princípio de Identidade.
(Sandra Corazza. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação. Petrópolis: Vozes, 2001. Parágrafo final do capítulo 3, p. 76)

9. Orações infinitivas

Enfiar-se na leitura é en-fiar-se no texto, fazer com que o trabalho trabalhe, fazer com que o texto teça, tecer novos fios, emaranhar novamente os signos, produzir novas tramas, escrever de novo ou de novo: escrever. (Jorge Larrosa. Pedagogia profana. Danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando, 1998. Parágrafo final do Capítulo 6, p. 183)

sexta-feira, 28 de março de 2014

Mini Documentário - Bifurcações na formação de Professores.

Mini documentário sobre a Oficina Bifurcações na formação de Professores, realizada pelo Projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida, com os professores das escolas vinculadas ao projeto. Tendo como oficineiros a Professora Regina Olea e acadêmica Maria Helena Figueiredo, contou com a participação especial do professor Claudiano Christ. A oficina aconteceu no mês de Setembro de 2013 durante o Circuito Cultural Setembro Freire sob a coordenação da Prof.ª Ms Larissa Silva Freire Spinelli, em Cuiabá - Mato Grosso.

"Do erro veio a ideia"




Entrevistada | Regina Olea 
Direção | Carlos Augusto Lopes dos Santos
Produção | Aline Nunes de Santana Lima e Filipe Breno Gomes Vinhas
Fotografia e som direto | Carlos Augusto Lopes dos Santos e Filipe Breno Gomes Vinhas



Coordenadores do Projeto

Coordenadora Geral e do Núcleo UFRGS | Sandra Mara Corazza
Coordenadora do Núcleo UFPel | Carla Gonçalves Rodrigues
Coordenadora do Núcleo Unioeste | Ester Maria Dreher Heuser
Coordenador do Núcleo UFMT | Silas Borges Monteiro

quarta-feira, 26 de março de 2014

29 maneiras de abrir um texto

Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Programa de Pós-Graduação em Educação
Argumentação, Estilo, Composição: Introdução à Escrita Acadêmica
Tomaz Tadeu da Silva

29 maneiras de abrir um texto

O primeiro parágrafo é, quase sempre, o mais difícil. Mas é também, talvez, o mais importante. Em primeiro lugar, porque é ele que vai apresentar o argumento, a tese, o tema, a ideia principal do texto (ensaio, artigo, capítulo, etc.). A forma do primeiro parágrafo determina, assim, decisivamente, a estrutura e o desenvolvimento do resto do texto. Um mau começo pode acabar dando num mau texto ou até mesmo pode fazer com que o texto não vá adiante. Depois, o primeiro parágrafo é decisivo também para despertar e estimular o interesse de quem vai lê-lo. O primeiro parágrafo pode ajudar a “pegar” imediatamente o leitor ou, ao contrário, a afastá-lo do texto logo no começo.
É por isso que vale a pena investir na elaboração de um bom primeiro parágrafo. No que se segue, vamos passar em revista algumas sugestões de como escrever um primeiro parágrafo. É apenas uma lista de sugestões. Pode-se – deve-se! – pensar e utilizar outras.

1. Uma história, uma anedota

Não há quem não goste de uma boa história, uma boa narrativa. Além de seu inegável poder de atração, uma boa história ajuda a tornar concretas idéias demasiadamente abstratas.

Certa vez perguntaram ao poeta Sandro Penna por que ele só escrevia poemas sobre rapazes, quase como uma obsessão, como se o mundo não estivesse cheio de tantos temas, coisas e fatos. Ele simplesmente respondeu: “Ah, meu querido, o resto me entedia!”.
(Denilson Lopes. “O homem que amava rapazes (um ensaio B)”. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio: Aeroplano, 2002: 50-66. P. 50)

 2. Uma pergunta (ou uma série de perguntas)

Em geral, o objetivo de um bom texto dissertativo é discutir um problema, uma questão, um tema polêmico. E a maneira mais direta de apresentar um problema é precisamente por meio de uma pergunta. A estratégia de começar por uma pergunta coloca o leitor – e o próprio autor! – imediatamente no meio do problema.

Por que se discute a “ética” da Medicina? Tradicionalmente, os estudantes dos cursos médicos aprendiam uma matéria que se chamava “deontologia”, disciplina que integrava os princípios éticos necessários ao exercício da profissão. Hoje a deontologia não basta para definir as normas éticas dessa prática. Por quê? (...)
(José Gil. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio d’Água, 1997. Parágrafo inicial do capítulo “O interior do corpo e a ética da medicina”, p. 215)

O que acontece com a sexualidade quando professoras e professores que trabalham no currículo da escola começam a discutir seus significados? Será que a sexualidade muda a maneira como a professora e o professor devem ensinar? Ou será que a sexualidade deveria ser ensinada exatamente da mesma forma que outra matéria? Quando os professores pensam sobre a sexualidade, o que é que eles pensam? (...)
(Deborah Britzman. “Curiosidade, sexualidade e currículo”. In Guacira Lopes Louro. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999: 83-111. Parágrafo inicial, p. 85)

O currículo nacional tem “moral”? Institui um código, um sistema, uma doutrina moral? Indica o que é bom e o que é mau dizer, pensar, sentir? Estabelece parâmetros para julgar a conduta humana diante do bem e do mal? Aponta valores e regras de ação, necessários para uma vida moralmente boa? (...) Em caso afirmativo, de que tipo é a sua moralidade? Quais são suas leis, verdades e finalidades morais? Quem é o sujeito que pretende moralizar?
(Sandra Corazza. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação. Petrópolis: Vozes, 2001. Parágrafo inicial do capítulo 4, p. 77)

3. Uma afirmação forte, surpreendente

Começar com uma afirmação forte, categórica, quase sempre causa surpresa e gera expectativa. Ela é ainda mais forte quando a frase que a expressa é curta, econômica, concisa.

Ao final da Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental. Às margens da comunidade, às portas das cidades, abrem-se como que grandes praias que esse mal deixou de assombrar, mas que também deixou estéreis e inabitáveis durante longo tempo. Durante séculos, essas extensões pertencerão ao desumano. (...)
(Michel Foucault, início do Cap. 1 de História da loucura na idade clássica)

O corpo parece ter ficado fora da escola. Esta é, usualmente, a primeira impressão quando observamos as mais consagradas teorias educacionais ou os cursos de preparação docente. E talvez não nos surpreendamos com isto, já que a nossa formação no contexto filosófico do dualismo ocidental leva-nos a operar, em princípio, com a noção de uma separação entre corpo e mente. (...)
(Guacira Lopes Louro. Currículo, gênero e sexualidade. Porto: Porto Editora, 2000. Início do capítulo 5, p. 87)

O estudante estuda. Pensemos, por um momento, que o estudante estuda. Não está ainda preparando os exames. Tampouco está escrevendo uma resenha, nem redigindo um trabalho para seu curso. Nem sequer está pensando em suas coisas: no amanhã, que hoje já ameaça com sua chegada; ou naquilo que ainda está nele, no dia de ontem. (..) “Estendido no umbral do presente”, livre de vínculos e livre de pretensões, o estudante simplesmente estuda.
(Jorge Larrosa. Pedagogia profana. Danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando, 1998. Parágrafo inicial do Capítulo 10, p. 247)

4. Uma referência literária

Há um personagem de Borges – um estudante de medicina chamado Baltasar Espinosa – a quem um dia “ocorreu que os homens ao longo do tempo, repetiram sempre duas histórias: a de um navio perdido que busca pelos mares mediterrâneos uma ilha querida, e a de um deus que se faz crucificar no Gólgota”. A história de uma viagem e de um sacrifício. (...)
(Jorge Larrosa. Pedagogia profana. Danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando, 1998. Parágrafo inicial do Capítulo 1, p. 25)

5. Uma citação

“Chamamos de loucura essa doença dos órgãos do cérebro...”. Os problemas da loucura giram ao redor da materialidade da alma.
(Michel Foucault, início do Cap. 7 de A história da loucura na Idade Clássica)

6. Uma sequencia de citações

Para começar, uma citação de Beyond a boundary, de C.L.R. James: “O tempo passaria, antigos impérios cairiam e novos ocupariam seus lugares. As relações de classe tinham de mudar antes que eu descobrisse que não é a qualidade e a utilidade dos bens que importam, mas o movimento, não o que você é ou o que tem, mas de onde você vem, para onde vai e em que ritmo está chegando lá”. Ou começar, de novo, com hotéis. Conrad, nas primeiras páginas de Vitória: “A época em que estamos acampados como viajantes desnorteados em um hotel vulgar e sem sossego”. Em Tristes trópicos, Lévi-Strauss evoca um cubo de concreto fora de escala posto no meio da recém-construída cidade de Goiânia, em 1937. É seu símbolo da barbárie da civilização, “um lugar de trânsito, não de residência”. O hotel como estação, terminal de aeroporto, hospital e assim por diante: um lugar por onde se passa, onde os encontros são fugazes, arbitrários.
(James Clifford. “Culturas viajantes”. In Antonio Arantes (org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000: 51-79. Parágrafo inicial, p. 51).

7. Uma afirmação que contradiz a opinião corrente

A prisão é menos recente do que se diz quando se faz datar seu nascimento dos novos códigos. A forma-prisão preexiste à sua utilização sistemática nas leis penais. Ela se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de esforços (...).
(Michel Foucault, parágrafo inicial do Cap. I da Parte IV de Vigiar e punir)

Verdade trivial à qual é hora de voltar: a consciência da loucura, pelo menos na cultura européia, nunca foi um fato maciço, formando um bloco e se metamorfoseando como um conjunto homogêneo. Para a consciência ocidental, a loucura surge simultaneamente em pontos múltiplos, formando uma constelação que aos poucos se desloca e transforma seu projeto, e cuja figura esconde talvez o enigma de uma verdade. Sentido sempre despedaçado.
(Michel Foucault, início da Introdução da Parte II de A história da loucura na Idade Clássica)

8. Apresentação de um argumento que se vai contradizer

Parece que, por muito tempo, teríamos suportado um regime vitoriano e a ele nos sujeitaríamos ainda hoje. A pudicícia imperial figuraria no brasão de nossa sexualidade contida, muda, hipócrita. / Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. / (...) Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz meridiana, até as noites monótonas da burguesia vitoriana. (...) / Ora, em relação ao que se chamaria “hipótese repressiva”, podem ser levantadas três dúvidas consideráveis. (...)
(Michel Foucault, início da História da sexualidade, vol. I)

9. Anúncio de um acontecimento

A loucura, cujas vozes a Renascença acaba de libertar, cuja violência porém ela já dominou, vai ser reduzida ao silêncio pela era clássica através de um estranho golpe de força. / (...)
(Michel Foucault, parágrafo inicial do Cap. 2 de A história da loucura na Idade Clássica)

10. Afirmação de uma identidade

A loucura, portanto, é negatividade. Mas negatividade que se dá numa plenitude de fenômenos, segundo uma riqueza sabiamente disposta no jardim das espécies.
(Michel Foucault, início do Cap. 8 da Parte II de História da loucura na Idade Clássica)

11. Referência a um depoimento

“Uma tarde eu estava ali, olhando muito, falando pouco, ouvindo o menos possível, quando fui abordado por uma das mais bizarras personagens desse país, que Deus não deixou que faltasse. É um misto de altura, baixeza, bom senso e desatino”. No momento em que a dúvida atingia seus perigos maiores, Descartes tinha consciência de que não podia estar louco – sem que isso impedisse que reconhecesse, durante muito tempo ainda e até o mau gênio, que todos os poderes do desatino espreitavam à volta do seu pensamento. (...)
(Michel Foucault, início da Introdução da Parte III de História da loucura na Idade Clássica)

12. Anúncio ou descrição de uma transformação social ou histórica

No decorrer do século XVIII, alguma coisa mudou na loucura. Houve, de início, esse medo que parece ligar o desatino às velhas obsessões, devolvendo-lhe uma presença que o internamento havia conseguido evitar – ou quase. (...)
(Início do Cap. 11 da Parte III de História da loucura na Idade Clássica)

Se o século XX foi o século das mulheres, (...), o século XXI bem pode ser aquele em que a homossexualidade se institucionaliza e se estabiliza socialmente. No Brasil dos anos 90, jornais e telenovelas exploraram mais o tema, embalados pela polêmica suscitada em torno do projeto de união civil entre pessoas do mesmo sexo, apresentado pela então deputada federal Marta Suplicy.
(Denilson Lopes. “Escritor, gay”. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio: Aeroplano, 2002: 19-42. P. 19)

Vivemos em uma época – costuma-se dizer – em que as coisas estão se acelerando e se disseminando. O capital está passando por uma nova fase de internacionalização, especialmente em termos financeiros. Mais pessoas viajam com mais freqüência e para lugares mais distantes. (...)
(Doreen Massey. “Um sentido global do lugar”. In Antonio Arantes (org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000: 176-185. Parágrafo inicial, p. 177)

13. Uma definição

A melancolia não é só uma sensibilidade constituída a partir da experiência da passagem do tempo, de uma finitude, na dolorosa dificuldade de esquecer num mundo que prima pela rapidez, mas ela se torna mesmo a base de uma formação (Bildung) adequada à contemporaneidade. (...)
(Denilson Lopes. “A viagem e uma viagem”. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio: Aeroplano, 2002: 165-186. P. 165)

14. Uma afirmação sobre fato social que pede demonstração ou que dá contexto para o que se segue

A condição estrangeira se dissemina e se massifica, diante dos cada vez mais intensos fluxos migratórios que atravessam o planeta. Nesse contexto, o que pretendo tratar não é tanto da experiência de mal-estar do intelectual moderno exilado, devido a dificuldades políticas e/ou pela perda de papel social no seu país. (...) Os textos sobre os quais vou falar tratam de personagens urbanos, de classe média (...).
(Denilson Lopes. “Entre homens, entre lugares”. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio: Aeroplano, 2002: 187-212. P. 187).

Nos últimos anos, as pressões para o ajuste às normas do mercado global têm criado programas de reestruturação urbana surpreendentemente similares. Os centros das cidades fazem brotar arranha-céus em “distritos financeiros” e museus de arte em “distritos culturais”, e os dois distritos normalmente se desenvolvem ao mesmo tempo. (...)
(Sharon Zukin. “Paisagens do século XXI: notas sobre a mudança social e o espaço urbano”. In Antonio Arantes (org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000: 104-115. Parágrafo inicial, p. 104)

15. Uma história pessoal, subjetiva

Nos anos 80, urbanóide, intelectualizado, tímido, pop, trazendo no corpo e nos silêncios os ecos de uma abertura política lenta e gradual, não me via no cinema brasileiro, na sua história. Aprendi a gostar de filmes brasileiros não pelo Cinema Novo nem pelo Cinema Marginal, mas pelo chamado Neon-Realismo (...). Me vi na solidão geracional do adolescente de Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles. Pegue ansiosamente a fila no Festival de Cinema de Brasília pra ver a estréia de Anjos da noite, de Wilson Barros. Houve troca de rolo. Não importou. (...)
(Denilson Lopes. “Onde andará o meu amor?”. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio: Aeroplano, 2002: 213-246. P. 213)

Aqueles que, como eu, nasceram no Reino Unido no imediato pós-guerra foram treinados para escrever ensaios. Esperava-se que ordenássemos nossos pensamentos para construir um raciocínio com uma introdução e uma conclusão. No entanto, mais recentemente, com o surgimento da comunicação eletrônica por meio dos microcomputadores e da internet, estamos diante do desafio de aprender a operar em formatos de multimídia. O texto torna-se apenas um dos aspectos, acompanhados por imagens, vídeo, música e palavra falada. Em conseqüência, o aprendizado tem de abandonar a forma do ensaio e escrever em “nacos”, bem delimitados, suficientes em si mesmos, que possam ser consumido numa única “mordida”. (...)
(Mike Featherstone. “O flâneur, a cidade e a vida pública virtual”. In Antonio Arantes (org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000: 186-207. Parágrafo inicial, p. 187)

Como jovem mulher, eu sabia que a sexualidade era um assunto privado, alguma coisa da qual deveria falar apenas com alguém muito íntimo e, preferentemente, de forma reservada. A sexualidade – o sexo, como se dizia – parecia não ter nenhuma dimensão social; era um assunto pessoal e particular que, eventualmente, se confidenciava a uma amiga próxima. “Viver” plenamente a sexualidade era, em princípio, uma prerrogativa da vida adulta, a ser partilhada com um parceiro do sexo oposto. (...)
(Guacira Lopes Louro. “Pedagogias da sexualidade”. In Guacira Lopes Louro. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999: 9-34. Parágrafo inicial, p. 9).

16. Exemplo(s)

Esta mulher que vejo andando em minha direção, este homem que passa na rua, esse mendigo que ouço cantar de minha janela são objetos para mim, sem a menor dúvida. Assim, é verdade que ao menos uma das modalidades da presença do outro a mim é a objetividade. (...)
(Jean-Paul Sartre. O ser e o nada. Ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1997. P. 326, parágrafo inicial de seção)

17. Declaração que pede, exige demonstração

Qualquer discurso sobre o corpo parece ter que enfrentar uma resistência. Ela provém certamente da própria natureza da linguagem: como para a morte ou para o tempo, a linguagem esquiva-se à intenção de definir (...).
(José Gil. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio d’Água, 1997. Parágrafo inicial do livro, 13).

18. Uma afirmação filosófica, fenomenológica

De outrem, da sua subjetividade, não tenho senão uma experiência indireta. A percepção direta de seus sentimentos, emoções, pensamentos, é-me vedada; apenas através da mediação do corpo me é dado inferir que estou em presença de outro “eu”, um “alter ego”. Essa mediação compõe-se essencialmente de “indicações” corporais.
(José Gil. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio d’Água, 1997. Parágrafo inicial do capítulo “O interior do corpo”, p. 147)

19. Um diagnóstico

Para uma disciplina cujo rito de passagem central é o trabalho de campo, cuja fascínio tem-se baseado na exploração do remoto (...), surpreendentemente tem havido, na teoria antropológica, pouca consciência da questão do espaço. (...)
(Akhil Gupta e James Ferguson. “Mais além da ‘cultura’: espaço, identidade e política da diferença”. In Antonio A. Arantes (org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000: 30-49. Parágrafo inicial, p. 30).

20. Uma descrição

O “Veículo do sem-teto” é uma intervenção dissonante na paisagem. Projetado por Krzysztof Wodiczko, um artista de Nova York, o veículo foi exibido pela primeira vez em 1988. O protótipo foi construído a partir de consultas (...). Projeto em andamento, passou por revisões e modificações contínuas, e comporta agora quatro variantes. (...) Nessa simbiose de objeto simbólico e funcional, o “Veículo do sem-teto” revela uma dimensão vital de uma política espacializada, a saber, a importância da escala.
(Neil Smith. “Contornos de uma política espacializada: veículos dos sem-teto e produção de escala geográfica”. In Antonio Arantes (org.). O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000: 133-159. Parágrafo inicial, p. 133)

Comecemos com uma imagem que tem assombrado nossa imaginação na última década: os olhos afundados, os corpos macilentos, a coragem aparentemente arruinada das pessoas com AIDS.
(Jeffrey Weeks. “O corpo e a sexualidade”. In Guacira Lopes Louro. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999: 35-82. Parágrafo inicial, p. 37)

21. Referência a uma canção, a um filme, a um livro, etc.

“O que será que será / Que todos os avisos não vão evitar / Porque todos os risos vão desafiar / Porque todos os sinos irão repicar / (...) / O que não tem governo nem nunca terá / O que não tem vergonha nem nunca terá / O que não tem juízo” (Chico Buarque, O que será?). Uma pergunta é provocativamente repetida numa das músicas mais bonitas e conhecidas de Chico Buarque: O que será? Para incitar a sua resposta, multiplicam-se pistas nos vários versos, que mexem com representações de desejo e prazer, que falam de uma força que “bole por dentro” e “brota à flor da pele; de algo que faz “confessar” e “corar”, de alguma coisa que “desacata”. A resposta mais imediata (ainda que talvez não a única) parece ser a sexualidade, representada aqui como uma energia, um turbilhão de emoções e sensações que move todos os indivíduos, independentemente da sua vontade; uma força incontrolável e nunca saciada.
(Guacira Lopes Louro. Currículo, gênero e sexualidade. Porto: Porto Editora, 2000. Início do capítulo 3, p. 37)

22. Referência à etimologia de uma palavra ou a seu significado no dicionário

Quem confia nos dicionários (e desconfia do que ali não está) talvez tenha resistência em iniciar este diálogo. No sentido muito específico e particular que nos interessa aqui, gênero não aparece no Aurélio. Mas as palavras podem significar muitas coisas. Na verdade, elas são fugidias, instáveis, têm múltiplos apelos...
(Guacira Lopes Louro. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. Primeiro parágrafo do capítulo 1, p. 14).

23. Uma sequencia ou série de substantivos/adjetivos ou de orações substantivas/adjetivas

Diferenças. Distinções. Desigualdades... A escola entende disso. Na verdade, a escola produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação distintiva. (...)

(Guacira Lopes Louro. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. Primeiro parágrafo do capítulo 3, p. 57. Pontuação ligeiramente modificada, para efeitos didáticos)

24. Um tom subjetivo

Algumas vezes me vi embaraçada pela adjetivação feminista. Como incorporá-la ao trabalho acadêmico, mais especialmente, como incorporá-la à atividade de investigação de modo que esse trabalho e essa investigação fossem respeitados como sérios, críticos, dignos de atenção e credibilidade? (..) Afinal, o que significa ser, hoje, feminista?
(Guacira Lopes Louro. Gênero, sexualidade e educação. Uma perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 1997. Primeiro parágrafo do capítulo 6, p. 142.)

25. Entrar direto no assunto (de preferência com uma frase curta)

As teorias pós-críticas em educação nos levam a questionar as subjetividades de personagens por demais familiares. A perguntar, por exemplo: De que modo e porque, nisso que chamamos o “Ocidente”, o humano foi objetivado como infantil, aluno, mulher, anormal, homem, branco, doente, homossexual, louca, criminoso, brasileira? Tais teorias nos fazem suspender a naturalidade a-histórica com que postulamos uma antropologia constitutiva ou qualquer ontologia transcendental. (...)
(Sandra Corazza. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação. Petrópolis: Vozes, 2001. Parágrafo inicial do capítulo 3, p. 56)

Não há conceitos da filosofia do inferno em si mesmos. Eles são sempre o resultado de trabalho do pensamento sobre matérias de inquietante estranheza, experiências paradoxais, intensidades-limites. Não dizem as coisas em sua essência, seja elevada, baixa, refinada, grosseira, bela, monstruosa, trágica, cômica. (...)
(Sandra Corazza. Para uma Filosofia do Inferno na Educação. Nietzsche, Deleuze e outros malditos afins. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. Início do capítulo “Amigo do estranho? Não, estranho em potência”, p. 37)

26. Alusão indireta a outro(s) texto(s)

Um espectro ronda o currículo: o espectro do pós-currículo. Todos os poderes do velho currículo aliaram-se para uma santa caçada a este espectro: tecnicistas e emancipatórios, críticos e liberais, sociólogos e consensuais, marxistas e neoconversos, radicais cidadãos e polícias do Rei, sindicalistas e o Papa.
(Sandra Corazza. O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em educação. Petrópolis: Vozes, 2001. Parágrafo inicial do capítulo 6, p. 128)

27. Referência a um autor ou a uma teoria

Basil Berstein estudo de modo magistral os princípios que estruturam o que ele denomina texto pedagógico. O texto pedagógico, diz Berstein, configura-se mediante a apropriação de outros textos que foram selecionados, descontextualizados, transformados e recontextualizados: a literatura escolar não é a Literatura, do mesmo modo que a física escola não é a Física e a história escolar não é a Física. (...)
(Jorge Larrosa. Pedagogia profana. Danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando, 1998. Parágrafo inicial do Capítulo 5, p. 145)

28. Referência a um ato concreto

Há ocasiões em que a aventura da palavra se dá em um ato de ler em público. Em tais ocasiões, e especialmente quando esse ato de ler em público tem lugar em uma sala de aula, costumamos dizer que se trata de uma lição. Lição, lectio, leitura. Uma lição é uma leitura e, ao mesmo tempo, uma convocação à leitura uma chamada à leitura.
(Jorge Larrosa. Pedagogia profana. Danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando, 1998. Parágrafo inicial do Capítulo 6, p. 173)

29. Referência ao próprio texto (metalinguagem)

Os títulos dos Seminários, dos Congressos, das Jornadas e demais eventos desse tipo são, sempre, um pouco pomposos. E essa questão de “formar o pensamento, pensar a formação” não é uma exceção. Esse Seminário é excepcional em muitas coisas, mas não é excepcional, e talvez não poderia sê-lo, no fato de nos convocar sob um título pomposo. (....)

(Jorge Larrosa. Pedagogia profana. Danças, piruetas e mascaradas. Porto Alegre: Contrabando, 1998. Parágrafo inicial do Capítulo 8, p. 208)