terça-feira, 3 de junho de 2014

Cata e as baratas‏

Um exercício de escrita: Catarina Sivieri Schlischka



Aparecem muitos animais na minha casa. Alguns são agradáveis, como o pássaro laranja e preto de canto tristíssimo que apareceu anteontem, a Bonnie e a Mel, que às vezes pulam o muro dos donos e sobem até a varanda enquanto vejo TV, ou vão miar na janela. A Bonnie faz isso quando eles viajam, acho que ela se sente solitária, e a Mel não parece ter outro motivo além de me observar de longe, com os grandes olhos dourados saltando no escuro.
 Alguns podem ser bem desagradáveis, nojentos, ou perigosos, e preciso tirá-los de casa. Ou do mundo, se forem baratas. 
 Meu quarto é o lugar onde mais aparecem baratas na casa, talvez por eu ter o mau hábito de comer na cama. Ou talvez, seja eu que sempre as veja, ouça e fareje, por sempre estar tensa, preocupada que elas possam aparecer. De qualquer modo, sou eu quem mais lida com elas. Eu não gosto de matar baratas. Prefiro sair do ambiente e gritar por alguém que só me chame de volta quando já tiver sumido com o corpo. Elas agonizam de uma forma horrível: morrem se contorcendo, cada segmento do abdômen flexível compondo uma dança do ventre asquerosa, as seis patas patinando no ar no desespero de se agarrar a algo e fugir dali, a cabeça alucinada batendo no chão... E me sinto muito babaca tirando a vida delas. Sempre me lembro de uma fala do Clint Eastwood em “Os Imperdoáveis”: “O diabo de se matar um homem é que você tira dele tudo o que ele tem, é, e poderia ter sido”. A vida, principalmente para um ser como elas, é tudo o que se tem. E além disso, um dia percebi que o cheiro delas é o mesmo que o da fumaça de alguns caminhões. Cheiro de dejeto, cheiro de tóxico. Cheiro dos nossos resíduos químicos e orgânicos, da nossa água contaminada, dos coliformes, dos desperdícios, dos esgotos onde elas vivem. Cheiro dos lugares para onde nossa vida moderna as empurrou e onde se adaptaram para sobreviver. Temos uma grande responsabilidade pela vida que elas têm, e me parece tão injusto matá-las depois de as termos ferrado... Prefiro seguir hipocritamente permitindo a matança, ao mesmo tempo que pesquiso formas de espantá-las de casa. Deve existir um odor que as espante.
 Mas na maior parte do tempo, preciso matá-las. Eu tenho que matá-las, porque não suporto a ideia de saber que ela está lá, viva, em algum lugar, esperando a hora de sair de novo, me observando, abrindo e fechando as mandíbulas horizontais e lambendo os palpos. 
 Mas é verdade que sinto o prazer do alívio depois que me livro de alguma. Já o fiz de várias formas: chinelo é o mais rápido, mas suja; veneno é bom para alturas, mas existe o risco do voo, sendo minha forma favorita, borrifá-la com um perfume barato ou tonteá-la com o chinelo e jogar álcool. Não é a mais rápida das mortes, e é provavelmente dolorosa: o álcool penetra nos espiráculos, que são buraquinhos por onde elas respiram, e as afoga. Deve arder, mas considero a forma mais limpa de se fazer isso. Antigamente, eu colocava fogo nelas depois de mortas, na esperança que o corpo sumisse. Nunca deu certo, e o cheiro se espalhava pelo jardim.
 Contei para um ex-namorado sobre meu sofrimento, dilema e medo quando precisava matá-las, e ele me falou de um ritual que ele sempre fazia, quando a mãe dele o chamava quando elas apareciam. Primeiro, ele pegava a barata nas mãos, e quebrava-lhe as antenas, deixando-a atordoada e insegura. Arrancava as seis patas, uma a uma, e depois o casco e as asas. Por fim, decepava-lhe a cabeça. E, tendo-a reduzido a uma existência aberrante, jogava-a no lixo. Ele sorria. E eu via o próprio Fortunato e o seu rato, atrás daqueles sempre calmos olhos verdes e úmidos, que nunca mais foram os mesmos para mim.
 Houve uma barata que desejei manter viva, que pude manter viva, algo que me alegrou. Ela era grande, tinha duas antenas inquietas, e pernas ligeiras. Era igual a todas as outras, exceto pelo fato de ser verde, num tom fresco de folhas e brotos tenros, como feijões nascidos em algodão. Isso me induziu a tratá-la como um animal inofensivo de jardim. Através dos meus olhos racistas, ela era mais próxima das esperanças e dos vagalumes, e de vez em quando, tirava os olhos do livro para apreciá-la. 
 Nem sempre tive medo, sequer nojo. Quando criança, as pegávamos pela antena para brincar. Meu irmão as explodia com traques ou as jogava em formigueiros, e quanto a mim, não me lembro de fazer nada específico. Devia inventar alguma brincadeira, e soltá-las depois. Passei a ter medo quando um dia, minha mãe saiu e me deixou sozinha, e quando fechou a porta, vi uma enorme barata, atrás. Não querendo sujar a porta, pulverizei-a com Bom Ar. A barata voou e bateu nos meus lábios e bochecha, e eu, que nunca tinha visto barata voar, saí me estapeando e arrancando as roupas e alguns cabelos, até chegar ao box do banheiro, onde lavei o rosto seis vezes, até parar de sentir a sujeira no meu rosto, e finalmente poder abrir a boca e gritar. Nunca mais fui a mesma. 
 Eu estava lendo, então, e fui ao banheiro. Quando voltei, vi que a barata verde não estava mais na janela, percebi que o criado-mudo estava torto, e empurrei-o com força. As rodinhas rangeram, e ao chegar na parede, ouvi o som que as folhas secas fazem quando se pisa nelas. Bastou aquele som cruel para saber que havia esmagado a única barata que jamais teria matado. Ela ainda tremia as antenas e mexia a boca debilmente, e fiquei olhando até ela parar. Coloquei-a na grama do jardim, de onde imagino que ela veio, e não voltei a ler naquela noite.

Um comentário:

  1. Catinha, adorei o seu texto! Você tem futuro como escritora. Parabéns! Beijos da vovó Didi. :-*

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