segunda-feira, 4 de março de 2013

A escritura e a diferença: uma leitura de Jacques Derrida


Silas Borges Monteiro
Coordenador do EFF


Aqui pretendo fazer um resumo do pequeno, mas importante livro de Evando Nascimento cuja intenção é introduzir o pensamento de Jacques Derrida. Tomarei a liberdade de apenas indicar a referência, sem os cuidados da notações técnicas, para dar agilidade ao texto. Quando o contrário impelir-me, farei todas as honras à ABNT.
Tem de ser dito, de início, que Jacques Derrida é de família judia. Isso não é pouca coisa nos anos 1930. Experiências de segregação; é adolescente durante a segunda guerra; nasce num país que é colônia da França. E para colocar mais farinha nesse caldo, recebe nome americano. Há muitos nós que precisam ser rompidos quando se nasce numa circunstância dessa.

Uma vida, um estilo
Mas, vamos lá. Nasceu em 15 de julho de 1930, na cidade de El Biar, Argélia (informações da cidade e da naturalidade de Jacques Derrida).
Vejam que a vida de um filósofo deve ser tratada em seu movimento com o texto. Isto não quer dizer que o texto seja uma resposta aos seus dramas pessoais, mas sim que a vida dá um estilo de pensamento. Recorro a três afirmações que ajudam-me a montar uma ideia sobre a arte do estilo, e as apresento aqui por ordem de antiguidade.

Primeira ideia
Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do estilo. Comunicar um estado, uma tensão interna de phatos por meio de signos, incluído o tempo desses signos – eis o sentido de todo estilo; e considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo – a mais multifária arte do estilo de que um homem já dispôs. Bom é todo estilo que realmente comunica um estado interior, que não se equivoca nos signos, no tempo dos signos, nos gestos – todas as leis do período são arte dos gestos. Nisso meu instinto é infalível. Bom estilo em si – pura estupidez, mero “idealismo”, algo assim como o “belo em si”, como o “bom em si”, como a “coisa em si”… (Nietzsche, Ecce Homo, “Por que escrevo livros tão bons”§ 4)
Inicialmente, estilo têm sentido pois comunicam as forças afetuosas dos corpos; quanto maior a quantidade de estados interiores, maior a possibilidade de estilos. Portanto, um estilo não decorre do domínio de uma forma, mas da multiplicidade de tensões internas. Por esta razão penso que maior será a possibilidade de novidade de estilos quanto mais numeroso venha a ser a exposição às tensões, e isso pode vir pelo contato com o diverso da arte.


Segunda ideia
Dizemos isto, fazemos aquilo: que modo de existência isso implica? Há coisas que só se pode fazer ou dizer levado por uma baixeza de alma, uma vida rancorosa ou por vingança contra a vida. Às vezes basta um gesto ou uma palavra. São os estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem de um jeito ou de outro. (Deleuze, 1992, p. 126)
Um estilo está em feitos, em ditos. Estilos está além da formalidade gramatical para tomar corpo em corpos. Corpos possuem estilos; vidas possuem estilos. É a baixeza ou a altivez da vida que o que fazer dela. Somos assim, assim, por gestos e palavras de nosso estilo de vida.

Terceira ideia
É, portanto, a pluralidade de estilos, gêneros, tropos e ritmos – textos curtos ou longos, frases interrompidas, traços longos ou espaços em branco entre os aforismos, metáforas, níveis diferentes de escrita, alusões, etc. -, que servem para escritura de Nietzsche como meio de expressar um pensamento que é, em si, pluralista. (Olini, 2012, p. 42)
Pensamentos possuem estilos, visto em seu ritmo, suas opções, seus lugares, seu movimento: dada a intensidade de exposições se terá a virulência ou contaminação dele; dada a diversidade de exposições haverá sua pluralidade.
Ora, Derrida tem estilo refinado. Escreve como escreve por que quer fazer o que quer fazer. Ele dirá que escrever não é apenas saber que pela escritura seja feito o melhor, em termos de movimento da vontade ou da expressão:
É também não poder fazer preceder absolutamente o escrever pelo seu sentido: fazer descer deste modo o sentido mas elevar ao mesmo tempo a inscrição. (...) Escrever é saber que aquilo que ainda não está produzido na letra não tem outra residência, não nos espera como prescrição em qualquer Topos oupanion (localização última) ou qualquer entendimento divino. O sentido deve esperar ser dito ou escrito para se habitar a si próprio e tornar-se naquilo que a diferir de si é: o sentido. É o que Husserl nos ensina a pensar em A Origem da Geometria. O ato literário reencontra assim na sua origem o seu verdadeiro poder. (Derrida, pp. 13-14)
Portanto, o estilo da escrita derridiana não carrega sentido prévio, pois sabe que seu sentido habita a simultaneidade do ato de escrever. Com isso, a escritura não carrega um sentido dado anteriormente, nem nasce de um sentido: o sentido é parido no ato da escrita, movimentado pelo estilo. Logo, o estilo está na origem: o sentido é locatário involuntário do escrevedor, e toma vida própria. Isso é, ao mesmo tempo, para Derrida, tranquilizante e desesperador. Parece que isso é notado no estilo derridiano, com seus buracos, lacunas, incompletudes do texto: quer, pelo estilo, criar um sentido para além do sentido.
Daí minha concordância com Nascimento da dificuldade que se encontra em localizar Derrida no panteão dos herdeiros dos debatedores da ágora grega do século V a.C. Esses amigos da sabedoria têm a marca do discurso público e racional, do esforço de dizer o que obedece um sentido prévio. Este é o estilo da filosofia. Não é este o estilo derridiano. Também concordo que o papel da literatura não é nem o de relacionar filosofia e literatura, nem o de ilustrar um pelo outro. Talvez no rastro de Heidegger quer colocar estes discursos lado a lado para criar uma margem entre eles, justamente para situar seu discurso como discurso de margem; como afirma, ele caminha na direção de filósofos que (…) interrogam a filosofia para além do seu querer dizer, não a tratam somente como um discurso, mas como um texto determinado, inscrito num texto geral, encerrado na representação da sua própria margem. O que obriga não apenas a ter em conta toda a lógica da margem, mas a tê-la numa conta totalmente diferente; a relembrar sem dúvida que para além do texto filosófico não há uma margem branca, virgem, vazia, mas um outro texto, um tecido de diferenças de forças sem nenhum centro de referência presente (tudo aquilo de que se dizia — a "história", a "política”, a “economia”, a "sexualidade" etc — que não estava escrito nos livros: essa deformação com a qual não se terminou, parece, de fazer marcha atrás, nas argumentações mais regressivas e em lugares aparentemente imprevisíveis); mas também que o texto escrito da filosofia (desta vez nos seus livros) excede e faz quebrar o seu sentido.
Isso quer dizer que a filosofia e seu texto, na escrita derridiana, não tenha sentido. Ela tem sentido não como um sentido depositado, mas como sentido habitado, vivente no texto, e que se inquieta ao ser posto à margem de outros discursos. Com isso, quer que a filosofia seja vista como texto entre outros textos, e que deve ser tratado como lógica da margem, isto é, sua operação joga com o que é interno e externo. Seu sentido sempre vazará dos limites filosóficos, pois não é controlado por um centro de força, mas sim pela instabilidade gravitacional. Ora, por isso seu texto sempre dará vertigens, pois não tratará de tema de competência significativa dadas pela sociedade ou pela história, mas estará sempre em criação autoral. Não se faz isso a priori; isso é criação de trajeto.




Um estilo de filosofia
Também penso ser mais adequado inscrevê-lo como filósofo da diferença. Não só porque esse termo comparece com notada potência, mas porque tem como marca o pensamento diferencial, que é outra coisa do que se costuma chamar nos estudos culturais de tematização das diferenças. Parece que Derrida não quer pensar as diferenças, suas expressões culturais e sociais, as minorias ou maiorias que são tratadas de um modo que lhes suprimi direitos ou acessos. Isso que é feito nos EUA com seus textos, principalmente a partir dos anos 1990, parece-me inadequado, embora ele nunca tenha se furtado a alimentar esses debates. Em Derrida está em questão a différance. Sim, mesmo com a diferença há uma diferença. Diferença, como marca do pensamento francês dos anos 1960 em Derrida situa-se em um movimento singular: produzir a différance. Em 1968 faz uma conferência na Soubourne, que é publicada na revista Tel Quel, e depois no Margens: seu assunto, uma letra, a infração que comete com a norma da língua, a subversão da grafia, talvez o gramatocídio como força do grama em direção ao indecidível, pois não se ouve: “discreto como túmulo”, sem ressonância. É o abandono do estilo socrático - cuja força é a do logos - em nome, e pelo nome, de outro estilo, a dionisíaca filosofia trágica de Nietzsche. Aqui quero fazer notar que a filosofia e seu estilo derridiano, não pode comportar o movimento do logos da tradição: deve seu outro: penso naquele estilo que acolhe a dispersão, que marca o indecidível, que rastreia a incerteza.

Uma filosofia de manipulação
Talvez a melhor expressão da filosofia derridiana seja sua farmácia. O texto em que manipula Platão parece conter seu melhor ensaio desconstrutivo. Vejamos, inicial e brevemente Platão.
Sócrates — Pois bem: ouvi uma vez contar que, na região de Náucratis, no Egito, houve um velho deus deste país, deus a quem é consagrada a ave que chamam Íbis, e a quem chamavam Thoth. Dizem que foi ele quem inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, bem como o jogo das damas e dos dados e, finalmente, fica sabendo, os caracteres gráficos (escrita). Nesse tempo, todo o Egito era governado por Tamuz, que residia no sul do país, numa grande cidade que os gregos designam por Tebas do Egito, onde aquele deus era conhecido pelo nome de Amon. Thoth encontrou-se com o monarca, a quem mostrou as suas artes, dizendo que era necessário dá-las a conhecer a todos os egípcios. Mas o monarca quis saber a utilidade de cada uma e das artes e, enquanto o inventor as explicava, o monarca elogiava ou censurava, consoante as artes lhe pareciam boas ou más. Foram muitas, diz a lenda, as considerações que sobre cada arte Tamuz fez a Thoth, quer condenando, quer elogiando, e seria prolixo enumerar todas aquelas considerações. Mas, quando chegou a vez da invenção da escrita, exclamou Thoth: «Eis, oh Rei, uma arte que tornará os egípcios mais sábios e os ajudará a fortalecer a memória, pois com a escrita descobri o remédio para a memória. — «Oh, Thoth, mestre incomparável, uma coisa é inventar uma arte, outra julgar os benefícios ou prejuízos que dela advirão para os outros! Tu, neste momento e como inventor da escrita, esperas dela, e com entusiasmo, todo o contrário do que ela pode vir a fazer! Ela tornará os homens mais esquecidos, pois que, sabendo escrever, deixarão de exercitar a memória, confiando apenas nas escrituras, e só se lembrarão de um assunto por força de motivos exteriores, por meio de sinais, e não dos assuntos em si mesmos. Por isso, não inventaste um remédio para a memória, mas sim para a rememoração. Quanto à transmissão do ensino, transmites aos teus alunos, não a sabedoria em si mesma mas apenas uma aparência de sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação! Hão-de parecer homens de saber, embora não passem de ignorantes em muitas matérias e tornar-se-ão, por conseqüência, sábios imaginários, em vez de sábios verdadeiros!
Derrida lembra a posição platônica da recusa do objeto que dispensa seu autor, que fala para além dele, que o mata, que mata o pai. O texto para Platão é parricida. Nisso, é visto o cerne do ponto crítico da metafísica, afinal seu empenho é pela preservação da figura central do falante, do logos, da origem. O autor assume o papel de princípio do pensamento, visto, certamente, como racional. Há um movimento de repressão (para usar a opção de Paulo César Souza na tradução de Freud) que para Derrida é típico do teatro filosófico: o rebaixamento da escritura em nome da razão lógica, e, certamente, dialética. Por isso Nascimento dirá “A desconstrução seria então, num certo sentido, um conjunto em aberto de dispositivos que os textos de Derrida agenciam a fim de levar o discurso metafísico a seus impasses, um destes sendo o fato de o texto platônico se dar como texto escrito no momento mesmo em que condena a arte da escrita.”(p. 30)

Uma manipulação da morte
Derrida desconstrói a filosofia ocidental usando como estratégias o encontro dos indecidíveis, elementos ambivalentes que escapam das oposições binárias, ou seja, ou um ou outro. Os indecidíveis se mostram aditivamente, pois é e não-é um e/ou outro. Decidir por um fará recuar a riqueza da ambivalência do pensamento, além de cometer falta com o rigor da ideia. Nesse sentido, concordo com Olini quando discorre: “A partir do fonocentrismo ou logocentrismo de Derrida, isto é, a subordinação histórica da escrita à fala, o discurso pode ser concebido como presença, porque o falante é simultaneamente presente para o ouvinte. A escritura, segundo esta tradição logocêntrica, é considerada apenas como um complemento da voz, fadada à carência do logos e sua posição paternal platônica. Derrida, em certa harmonia com Barthes, também segue as vias de dissolução da noção de autoria, quando também decreta a morte do autor (falante e escritor) e toda esta sua prevalência. Ambos libertam a escrita dessa herança metafísica que a aprisiona em favor de uma máquina autônoma de escritura.” (p. 67) Derrida dirá em seu A escritura e a diferença: “A morte passeia entre as letras. Escrever, o que se denomina escrever, supõe o acesso ao espírito pela coragem de perder a vida, de morrer para a natureza.”(p. 100). Com a morte algo se marca, algo cessa. Derrida morreu em Paris, em 8 de outubro de 2004, de câncer de pâncreas. Já vi outras mortes assim.

Referências
DELEUZE. Conversações. (Traduçã. Peter Pál Pelbart). Rio de Janeiro: Ed. 34. 1992.
DERRIDA. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2009.
NASCIMENTO, Evandro. Derrida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 
NIETZSCHE. Ecce homo: como alguém se torna o que é. (Tradução Paulo Cezar de Souza). São Paulo: São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
OLINI, Polyana C. Escritura, vida e constituição de si: a arte do estilo. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2012.

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