sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

"Sem música, a vida para mim seria um erro"


Silas Borges MonteiroCoordenador do EFF
Texto de abertura da Audição do álbum The Dark Side of the Moon
21 de janeiro de 2013

Em uma carta escrita a Georg Brandes, no dia 27 de março de 1888 desde Niza, Nietzsche assim se expressa: “Sem música, a vida para mim seria um erro.” (Carta 1009. A Georg Brandes em Copenhague). A mesma frase aparece em Crepúsculo dos ídolos (§ 33). Também no póstumo 16 [24]. Por que seria a música tão importante para o filósofo alemão? Em sua opinião, música e conceitos estão em relação recíproca. A música é capaz de romper os limites da experiência individual, levando a pessoa a experimentar-se fora do ordinário, do comum, do já conhecido. Sua posição com respeito à música nasce do conhecimento que tinha da tragédia grega, cuja obra recebe o duplo impulso da forma e do excesso, dos deuses Apolo e Dioníso. Por isso dirá em seu curso sobre Sófocles: “a lei da medida arquitetônica na música é característica da arte apolínea e o puramente musical, sim, o caráter patético do tom, da dionisíaca.” (2a. aula) Depois de abandonar Wagner e sua música, encontrará em Bizet seu remédio: “Realmente, a cada vez que ouvi Carmen, eu parecia ser mais filósofo, melhor filósofo do que normalmente me creio: tornando-me tão indulgente, tão feliz, indiano, sedentário…” (O caso Wagner § 1) E mais adiante: “Bizet me faz fecundo. Tudo que é bom me faz fecundo”. (§ 1)
Reconheço este pathos em mim. Ao ouvir Nietzsche, parece que ouço meus próprios instintos. Não porque julgue que nos identificamos, ou me ache muito nietzschiano. Certamente não. Mas, por sofrer de um tremendo narcisismo, ouço as ideias sempre, de algum modo, a partir de minhas vivências. E nesse caso, comungo destas vivências de Nietzsche.
Minha memória seletiva encontra algumas canções que me acometiam. Meu pai cantando, para que eu dormisse, junto com seu violão Prece ao Vento do Trio Nagô, liderado por Evaldo Gouveia (de 1959), Benito de Paula, quando fazia sucesso, Bee Gees (gosto de minha mãe) e a música pop americana que minha irmã, quatro anos mais velha, ouvia. Além dos cantores brasileiros que se apresentavam como americanos: Morris Albert, Christian e outros. Também aprendi a ouvir Beatles com o seu álbum Abbey Road. Procurava discos das trilhas das novelas, nacionais e internacionais. Ou seja, julgava-me alguém de gosto comum e modesto.
Mas aos 14 anos, fui apresentado por um amigo, Reinaldo Takara Zoppei, hoje professor na UFMT de Rondonópolis, a um álbum: The Dark Side of the Moon, da, completamente desconhecida por mim, Pink Floyd. O álbum tinha menos de quatro anos.
Fui assolado pela música. Meus limites de gosto foram rompidos. A sonoridade, o ritmo, os ruídos e sons do álbum chegaram com uma potência nunca experimentada por mim. Ouvi o álbum inteiro. Embora ainda tenha flertes com os estilos da infância (com uma mudança significativa, é certo), não consigo encontrar em nenhuma outra música o que tenho com a sonoridade criada por Pink Floyd.
Conto isso por entender, como Nietzsche, que a música compartilha com a palavra o impulso para o pensamento. Músicas óbvias e letras ordinárias prendem a pessoa numa imensa lama de senso comum. Por isso, aposto na possibilidade de, ao fazer uma audição como esta, novos estilos de individuação sejam disparados. Este é um evento de cultura e arte, mas, claro, também de formação. Ao compartilhar este álbum, espero fazer circular novo pensamento, novo estilo, novo gosto.
Tudo começou quando estava em um voo a caminho de Cuiabá, enquanto lia o livro de John Harris: The Dark Side of the Moon. Os bastidores da obra-prima do Pink Floyd. Nele vi a informação que, por incrível que pareça, para uma geração que tem ao dispor o Mr. Google, li, pela primeira vez, notícias detalhadas sobre a gravação da música que mais amo do álbum: The Great Gig in the Sky. Li detalhes sobre Clare Torry e seu vocal, e chamou-me a atenção o dia em que ela gravou sua participação: 21 de janeiro de 1973. Marquei a data em minha agenda: todo ano celebraria o dia como uma das datas significativas do ano.
No fim do ano passado, durante planejamento do reinício do semestre em 21 de janeiro, ao comentar com uma colega sobre a importância da data, imediatamente tive a ideia de torná-la um acontecimento do álbum. Só depois de ter deflagrado o processo me dei conta de que a gravação da música, e a última feita para o álbum, fazia 40 anos. Comecei a procurar material para entrar no clima do álbum. Procurei livros, informações na rede e tantas outras.
Pois bem, no dia 21 de janeiro, há exatos 40 anos, a última faixa foi gravada do álbum The Dark Side of the Moon, com a criação vocal de Clare Torry. Era um domingo. Clare chegou ao estúdio em torno das 19h. Com alguma orientação geral, Clare recebeu a sugestão de fazer um vocal angustiante. Ela teria comentado com um amigo que não entendia porque haviam gostado da performance dela, pois parecia um gato irritado. Ela achou que não iriam usar sua gravação. Descobriu que foi usada no disco quando ouviu a música em uma loja de discos.
A orientação que deram indica o que haviam tematizado no disco: a experiência humana no limite, a dificuldade da sociedade em pensar a diferença, a facilidade com que rótulos são postos nas pessoas. Perda, angústia mas, ao mesmo tempo, a imensa vontade de vida, da vida que afirma a si mesma, da vida cuja potência esteja a empenho da constituição de si, sabendo o preço que se paga por isso. Sob certa influência de Ronald Laing, um antipsiquiatra londrino, acostumado a atender jovens cujas famílias julgavam “perturbados”; sua intervenção tendia a mostrar a naturalidade do que a cultura e os valores morais rotulavam como patológico.
Para nós, com essa atividade, além da celebração do aniversário de gravação da Clare Torry e da finalização do álbum, este evento inaugura o ano de trabalho do EFF: nosso tema é a experiência de exorbitância, principalmente de casos que a sociedade e o sistema médico insistem em rotular como patológicos.
Convido a todos a esta experiência musical e teórica. Foram convidadas pessoas ligadas à Universidade que aprenderam apreciar esta belíssima peça. A palavra está aberta.
Sejam bem-vindos.

Um comentário:

  1. Sem o EFF... Não estive, em corpo, presente à audição. Pensar o seu movimento foi maior, talvez, que o próprio acontecimento para mim. Foi a saudável e instigadora presença a uma das reuniões de discussão sobre como se daria o evento que me levou ao encontro de saborosas descobertas: 1o. o álbum por completo, conhecia sons isolados; 2o. o movimento Mágico de Oz e Dark Side of the Moon, uma das melhores experiências pelas quais já passei; 3o. ouvir nos depoimentos, gravados em áudio ou escritos, a vida dos componentes da banda; 4o. e agora, o prazer de uma leitura – audiovisual. Ao me deparar com o texto, sinto o cheiro, ouço a voz – e sua entonações – daquele que para mim é a pessoa mais sábia que conheço. Obrigado pelo prazer da leitura, Silas. O contato com o material nesse fim e início de ano me fez viajar por sensações que ainda não consigo nominá-las. Meu primeiro encantamento é com a experiência de escola vivida por Rogers: “o sadismo de um professor de alemão, que enrolava os dedos nos cabelos de suas vítimas, enquanto pressionava o rosto delas contra a carteira! Na porta da sala de outro professor havia os dizeres: ‘Arbeit Macht Frei’- O Trabalho Te Liberta – a terrível mentira escrita nos portões de entrada do campo de concentração de Auschwitz!” [Knott em publicação na internet] – isso me soa tão dia a dia e ordinário para mim que estou em sala com adolescentes e crianças. O segundo, a tentativa de expressão em música dos fluxos de pensamentos ao qual estamos todos nós sujeitos a todo tempo; não consigo ouvir as músicas sem pensar todas as linhas do célebre “O apanhador no campo de centeio”, uma juventude que busca a expressão daquilo que mais a aflige, angustia, lhe impõe medo – uma afirmação, do tipo “ESSE SOU EU, Hahahaaa”. Terceiro, a Clare. Tenho dormido com seus gritos; acho que ouvi o sussurro. Quando ouço “The Great Gig in the Sky” paro de pensar bobagens. Como diz Quintana, [o que sempre salvou a morte (e a vida) da gente é pensar em outras bobagens...]. Viajo por onde nunca pensei estar. Nas palavras de Deleuze: “minhas terras estrangeiras que não encontro em viagens”. Espero ansioso a publicação do e-book com os textos da audição. Sem o EFF, (antes GEDFFE), a vida para mim seria um erro!

    ResponderExcluir